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Posts sobre física de partículas, teórica e experimental.

Pauli, o tirano

Rookie

As primeiras aulas de física quântica não são interessantes, são revoltantes. Se você não sente vontade de jogar o livro na parede, isso indica que não está entendendo a matéria. A razão é também o motivo de tanto usarem essa área da física para venderem esoterismo pseudocientífico, acrescentando a palavra quântica a qualquer termo para soar mais elaborado (tarô quântico parece bem mais interessante que tarô); a física quântica não possui, para vários conceitos, analogias no nosso mundo.

Enquanto conseguimos analogias para o campo elétrico no eletromagnetismo, tentamos explicar que é como o correr de um rio, tomando metáforas e alegorias dos fluidos para explicar as cargas, a física quântica não lida bem com analogias. E não é de se estranhar, ela é, em última análise, muito mais fundamental que a nossa física clássica, a física do dia-a-dia. Como ela descreve o muito, muito pequeno, não é obrigada a ter nada em comum com a realidade que conhecemos. Vou dar um exemplo.

Aprendemos a existência de uma propriedade das partículas chamada spin. O nome engana, os que descobriram essa propriedade achavam que ela representava o quanto a partícula estava girando, e isso não é verdade. É uma boa analogia, mas, se levada a sério, a energia do spin, se entendida como de rotação, obrigaria a partícula a girar mais rápido que a luz, um problema grave de tentar importar conceitos clássicos como “girar” a partículas. Por fim, um bom livro de quântica apenas dirá que as partícula possuem essa propriedade chamada spin, como possui outras que nos são familiares, como massa e carga. Mas não conseguimos perceber claramente a presença do spin em nosso mundo, foi uma propriedade descoberta apenas ao olhar para o muito pequeno. Assim, a pergunta: “o que exatamente é o spin?” não faz sentido. Ele é, ponto final, como a carga e a massa também são. Não se deve tentar explicar o muito pequeno pelo muito grande, é como tentar achar um análogo do tijolo entre os arranha-céus, o que você deve fazer é explicar o muito grande através do muito pequeno. A verdadeira pergunta é: “por que não vemos o spin no nosso dia-a-dia?”, e parte da resposta é dizer que, o spin podendo valer +1 ou -1, com muitas partículas juntas o +1 de umas compensa o -1 de outras e um corpo feito de muitos átomos acaba sendo “neutro” em spin. Outra parte da resposta está aqui, mas é um pouco mais complicada e não recomendo. E o que seria um corpo “carregado em spin”, com muito mais gente valendo +1 que -1? Chamamos esses corpos de imãs, e você provavelmente deve ter um em sua geladeira.

E o spin não é o único. Há um princípio fundamental e místico na quântica, cuja explicação honesta é bem complicada: o princípio de Pauli. De forma extremamente simplificada, esse princípio dos dirá que as partículas se dividem em dois grupos: os férmions (a maior parte dos que você conhece: o elétron, o quark, o neutrino) e os bósons (o fóton e outros menos conhecidos, como o glúon, eu sei, parecem todos nomes de pokemon). Enquanto os bósons vivem uma vida tranquila, os férmions devem obedecer ao princípio de Pauli, que diz que férmions iguais não podem jamais estar juntos no mesmo lugar. As noções de “juntos” e “mesmo lugar” são mais complicadas do que parecem, mas o princípio geral é esse: se dois férmions estão juntos, algo neles é diferente.

Esse princípio possui diversas implicações. Lembra-se daquela história de orbitais atômicos em suas aulas de química, ou do diagrama de Linus Pauling, ou das letras s, p, d, f? Esses conceitos todos são uma maneira diferente de escrever o princípio de Pauli. Os elétrons estão em torno do núcleo atômico, eles são férmions. Naturalmente, eles vão estar no menor estado de energia possível; se eles estiverem com uma energia alta, vão provavelmente enviar essa energia em forma de fóton e descer para um estado mais baixo de energia. Se fica difícil imaginar, tente visualizar essa energia como a “velocidade” dos elétrons. Se rápidos demais, eles podem enviar essa energia sobrando em forma de fóton e ficar mais devagar, sendo difícil acelerar de novo. Se um elétron tem mais energia que outro, dizemos que ele está em outra camada eletrônica. Aqueles desenhos de anéis concêntricos das camadas do átomo não são verdadeiros, a camada tem muito mais a ver com a velocidade do elétron que com a posição, e o lugar do átomo onde os elétrons ficam está bem diferente de círculos concêntricos, em alguns casos é mais perto de uma chupeta que de uma esfera.

No caso do estado de menor energia, teremos um problema. Um elétron consegue entrar lá, mas o próximo não, porque ele precisa ser diferente em algo, pelo princípio de Pauli. Então o primeiro entra com spin valendo +1, um segundo pode entrar valendo -1, e a entrada para elétrons é fechada depois disso. O estado de menor energia, o tal do orbital s, não pode abrigar mais que 2 elétrons, porque o princípio de Pauli impede. Se mais elétrons querem entrar no átomo, eles devem ter uma energia superior ao do estado 1s, devem ocupar um espaço em uma camada mais energética, que é onde está livre. Esse princípio, que antes parecia uma proibição arcana, rege a estrutura eletrônica dos átomos. Temos uma representação simples dessa lei nesse desenho tirado de xkcd.com:

E não somente lá. No interior de uma estrela grande, os elétrons são forçados a ficarem muito juntos e, pelo princípio de Pauli, devem diferir em alguma coisa. Sem opção, eles devem diferir em energia, isso força os elétrons do interior da estrela a terem muito mais energia do que eles “precisariam” se não fosse o princípio de Pauli; essa diferença de energia é responsável pela estabilidade da estrela durante milhares de anos; se não fosse o princípio de Pauli, os elétrons poderiam se encostar em um nível de energia baixa e o interior da estrela não conseguiria resistir à pressão gravitacional (é um pouco importante ler o post sobre evolução estelar para entender o que digo). Um fenômeno quântico, do mundo do muito pequeno, assegura que a estrela não colapse; Pauli exige que os elétrons sejam diferentes, e eles se tornam diferentes em alguma coisa, sem opção, devem aumentar sua velocidade para diferirem em energia.

O princípio de Pauli se aplica a todos os férmions. Curiosamente (putz, é um teorema bem difícil de provar, conhecido teorema da estatística do spin), todos os férmions possuem spin semi inteiro (1/2, 3/2, 5/2) e os bósons possuem spin inteiro (0, 1, 2), o que conecta esses dois conceitos de modo nada trivial e torna a teoria quântica de campos mais divertida.

Apesar de parecer místico, uma proibição de juntar partículas iguais, o princípio de Pauli nada tem de misterioso e possui formulação matemática precisa e elaborada. A quântica sofre daquele mal, ao enunciar uma lei, tê-la rapidamente roubada por charlatães esotéricos que a convertem em frases genéricas e sem sentido como “estamos todos conectados no mundo quântico” ou “cada partícula é única, cada indivíduo é único”. Ao encontrar um desses, não combata, fuja. Não tente explicar, corra. Eles não parecem querer a verdade, gostam mais de adequar a ciência a suas preconcepções; e dizer a verdade a quem não a ama é apenas dar mais munição para ser mal interpretado. Não estou em uma cruzada contra misticismo ou esoterismo, isso é assunto para outro post, como aquele sobre os comentário de Ayres Britto, mas talvez ainda outro blog; deixo apenas um aviso, como físico, que esse uso da quântica como fonte de frases-feitas pseudocientíficas me revolta. A quântica é a teoria mais testada da física, e a que passou nos testes com maior precisão, a mais “certa” das áreas, e talvez a mais estranha por suas leis e ditos sem análogo clássico. Como elétrons que giram sem girar, como gatos que estão mortos e vivos, como Pauli, ditando que partículas iguais, por mais que se amem, não podem ficar juntas.

Um diagrama nada claro

Rookie

Na faculdade, aprendemos a física por sua trajetória histórica: começamos pelas leis de Newton, sua mecânica, passamos ao estudo de ondas, óptica, termodinâmica, atravessamos o eletromagnetismo e terminamos a “física básica” com quântica. Mais para o final do curso, continuamos com a física do século XX, da qual a quântica faz parte, além de incluir a física estatística e a relatividade geral nessa história. Matérias mais avançadas, como a teoria quântica de campos (TQC) e a teoria estatística de campos (TEC) são assunto de mestrado e doutorado, muita gente parece viver bem feliz sem jamais tocar em um livro de qualquer dessas matérias.

Mas a relação entre as áreas da física não é essa histórica, uma não leva naturalmente a outra. É possível ser muito feliz em uma área da física sem jamais precisar se aprofundar muito em outra (ainda que grandes descobertas costumem ser feitas apenas por físicos com um vasto conhecimento de quase todas as áreas), não preciso saber astronomia para trabalhar com física do estado sólido (ou física dos materiais).

Então decidi tomar alguns minutos, sentar e pensar em um diagrama mais compreensivo da física, que leve em conta as interconexões entre as áreas e que seja uma divisão justa e organizada dessa ciência. É evidente que cheguei a algo bem confuso, mas o resultado não ficou feio, e coloco-o aqui.

Muitos físicos vão discordar com ferocidade da divisão e organização, mas foi o melhor que pude, não conheço tanto de todas as áreas para entrar em uma reflexão mais profunda que o que escrevo nesse post.

Comecei colocando a matemática como centro. A física é inteira apoiada na matemática, e nela estão muitos dos vínculos das áreas da física. Em seguida, tracei as três principais áreas da física: relatividade (geral ou restrita), física estatística e física quântica.

Física quântica: é o estudo do muito pequeno, muito mesmo. Estamos falando de elétrons, prótons, átomos, nada que possamos ver ou tocar diretamente, precisamos estar pelo menos a 0,00001 mm ($10^{-8}$m) para começar a sentir algum efeito dos estudos dessa área. Ainda, é o que precisamos estudar para entender do que as coisas são feitas, como fazer coisas novas, materiais novos, entender as leis que regem a escala atômica e usá-las.

Relatividade: estudamos os efeitos de velocidades muito altas (próximas às da luz, que é a máxima possível), massas muito grandes (como a da Terra ou a do Sol) e energias muito elevadas (como a explosão de uma estrela).

Física estatística: é a área que tenta deduzir, a partir do mundo do muito pequeno, o que acontecerá no nosso mundo. Tentamos entender como a gota de água tende a ficar junta se ela é feita de várias moléculas, ou como não conseguimos atravessar a parede se o espaço entre os átomos é muito maior que os átomos.

Assim, posso explorar as intersecções entre essas áreas. Se estamos na fronteira entre relatividade e quântica, estamos falando da teoria quântica de campos (TQC), uma área bem complicada que tenta escrever a mecânica quântica em uma linguagem que leve a relatividade em conta. Não me atrevo a tentar misturar relatividade geral com quântica, ninguém consegue fazer isso decentemente. Entre a física estatística e a quântica, teremos a teoria estatística de campos (TEC), que usa diversas propriedades do mundo do muito pequeno para explicar muito fenômenos do nosso cotidiano, em uma linguagem matemática bem trabalhada e bem parecida com a da TQC. Eu poderia colocar tudo em uma área só, campos, mas assim fica mais fácil de ver.

Entre a relatividade e a física estatística, temos a astrofísica, o estudo das propriedades físicas das estrelas, galáxias, que exige tanto conhecimento de relatividade, por reger as leis fundamentais desses corpos, como conhecimentos da física estatística, porque uma estrela é formada de muitos átomos e uma galáxia de muitas estrelas. A relatividade, sozinha, inclui a nossa querida mecânica do colegial, que é apenas um caso particular da relatividade para baixar velocidades e massas suficientemente pequenas. A física estatística, quando aplicada a gases e líquidos, torna-se a termodinâmica.

Se continuamos, podemos pensar que o estudo das propriedades físicas dos corpos celestes aliado às leis de Newton nos permite saber a posição, trajetória e diversas outras grandezas estudadas pela astronomia. A astrofísica, quando estudada em grande escala e recebendo o apoio das leis da termodinâmica e da física estatística, torna-se a cosmologia: o estudo do universo como um todo, sua expansão, evolução e destino. Aplicar a teoria estatística de campos à termodinâmica nos torna capazes de descrever estruturas mais complexas que gases, podemos até pensar em cristais, coloides, plásticos, estamos na física do estado sólido. A teoria quântica de campos e a teoria estatística de campos se encontram para descrever propriedades complicadas do mundo subatômico, permitindo-nos estudar a física de partículas. Por fim, a teoria quântica de campos, capaz de descrever os elétrons e os prótons (que possuem carga) e a mecânica de Newton se encontram no eletromagnetismo.

Por fim, podemos colocar algumas outras áreas. O eletromagnetismo é muitas vezes estudado profundamente no aspecto de transmissão de energia eletromagnética em forma de onda, uma área conhecida como óptica, que engloba toda a propagação de ondas eletromagnéticas no vácuo ou não. A física do estado sólido e a de partículas se encontram para tentar gerar materiais novos, diferentes, estruturas moleculares complicadas, e podemos atribuir esse estudo à química molecular, que não é tanto física assim, mas merecia um lugar no diagrama. As partículas e o eletromagnetismo juntam forças para desbravar os mistérios do centro do átomo, em uma área muito ativa no último século chamada física nuclear. E das partículas, sozinha e um pouco isolada, quase uma sub-área da matemática, parte a teoria das cordas.

Qual a lógica do diagrama? Se você quiser estudar alguma área, terá que saber bastante de todas as áreas internas à que escolheu, estudando todas as que sua área toca no anel interior. Claro, isso não torna as áreas exteriores mais difíceis, você muitas vezes não precisa se especializar nas áreas interiores para saber a sua, é apenas um diagrama que indica vínculo, procedência e contato entre as áreas. Queria que o diagrama terminasse com um anel completo, mas não consegui pensar em nada que viesse de estado sólido e cosmologia, ou nada melhor para colocar entre astronomia e cosmologia que “coisas do espaço”.