Estou atrasado para comentar algo sobre ondas gravitacionais, mas esse atraso tem dois motivos. O primeiro é a saturação da mídia, é difícil achar algo para escrever que já não tenha sido escrito, e melhor, sobre o tema; e o segundo é eu já ter comentado isso no alarme falso de ondas gravitacionais que tivemos em 2014.
Dessa outra vez, como todo o resto da mídia, empolguei-me antecipadamente, caindo no grande erro de cantar vitória antes do peer-review. Esse episódio serve de lição no que é o centro da ciência: a ideia da autocorreção, e de não ter medo de dizer que está errado. Comento isso em outro post, nesse vamos ver o experimento LIGO, o que fez e o que mediu.
O artigo você encontra aqui. Vou tentar contar a história que o artigo apresenta sem a linguagem técnica, que nem eu entendo tão bem, não sou astrofísico, mas meu curso de relatividade geral no mestrado vai me servir de algo. Em setembro de 2015, o observatório LIGO (Laser Interferometer Gravitational-Wave Observatory), encarregado de medir alterações no campo gravitacional em sua volta, detectou um forte sinal. Ele possui dois detectores, um em Washington e um em Louisiana, e é importante ter dois detectores para diferenciar o que é ruído e o que é sinal. Todo detector, como antena de televisão antiga, possui ruído, e ondas gravitacionais são tão difíceis de medir que apenas eventos que produzam alguma alteração considerável na gravidade podem vencer o ruído e ser medidos. O sinal medido foi esse:
O eixo x, cortado do gráfico, representa intervalos de 0.05s nos ticks maiores. Na esquerda você vê o sinal medido em Washington e na direita, Washington e Louisiana sobrepostos. Pelo gráfico da direita você consegue ver que o começo do sinal ainda está cheio de ruído, há áreas em que eles não concordam nem um pouco, mas a partir do meio do gráfico há forte coincidência nos sinais, uma oscilação acelerando, crescente, e uma queda brusca na intensidade. Esses 0.1s de sinal são o que físicos esperavam faz 100 anos, desde que Einstein formulou a relatividade geral e propôs que a gravidade, como o eletromagnetismo, deve produzir ondas.
Essas ondas não são algo fácil de explicar ou entender sem alguma matemática, mas vou tentar. Gravidade, como descrita pela relatividade geral, é uma deformação do espaço-tempo. Eu sei que sem nenhuma equação isso parece mais uma frase de terapia de autoajuda quântica que ciência séria, então tente imaginar que gravidade acontece porque a massa dos corpos afeta o espaço em torno do corpo e atrai outros corpos para si. Quanto maior a massa, maior é esse efeito. Se um corpo massivo acelera, ele afeta o espaço em torno de si de um jeito um pouco diferente, ele perturba esse espaço com sua gravidade e essa perturbação pode se propagar.
Em uma analogia, uma grande explosão de dinamite libera energia que atinge as moléculas no ar, elas se propagam atingindo outras moléculas no ar, que atingem outras, e outras, até atingirem o frágil osso em nosso tímpano e registramos isso como um barulho alto. A gravidade se comporta de um jeito parecido, mas, diferentemente do som, ela é extremamente fraca, o que pode ser entendido na analogia como se fôssemos praticamente surdos. Apesar de nossa audição comprometida, Einstein previu faz cem anos que o som existe, e estamos tentando medi-lo ou detectá-lo de vários jeitos, tentando criar um aparelho auditivo cada vez melhor. Um dia, uma explosão acontece, e temos um excelente aparelho auditivo (o LIGO); finalmente, e pela primeira vez, conseguimos ouvir algum som do universo. Esse som você vê na figura acima.
E isso é diferente de simplesmente “detectar gravidade”, porque isso detectamos o tempo todo. Se você pular do quinto andar, certamente detectará mais gravidade do que gostaria, essa medida é de uma natureza diferente. Ainda na nossa analogia com som, é como se soprassem forte em seu rosto. Você consegue sentir vento e sopro sem problemas, detectar ar e movimento de ar não é a questão. Mas som é outra coisa. Som é a propagação de vibrações no ar causadas por objetos à distância, e ele carrega informação sobre esses objetos, é bem diferente de vento e brisa. Eu sinto por qualquer astrofísico que esteja lendo essa analogia entre gravidade e vento, mas foi o melhor que pude fazer.
Vale a pena discutir um pouco como esse tal de LIGO funciona. Ele tem dois braços (cada um de 4 km cada), um perpendicular ao outro, e cada braço possui um laser que vai e volta esses 4 km. Quando uma onda gravitacional passa, ela deforma o braço, porque altera a gravidade sutilmente e essa alteração faz a interferência entre os lasers mudar ligeiramente, mas o suficiente para medir uma alteração muito pequena. A sensibilidade de LIGO é excepcional, ele é capaz de detectar uma diferença no tamanho dos braços de uma distância menor que um núcleo atômico.
Depois de medir esse sinal, os cientistas usaram uma boa análise comparativa para diminuir o ruído e dar aquela alisada nos dados, todos nós físicos somos versados na arte de alisamento, chapinha e escova de dados experimentais. O resultado é:
Agora sim isso está bonito. Tendo o sinal bonito e alisado, que são as linhas cinza desses gráficos, resta fazer o trabalho de detetive. Pela primeira vez escutamos um som com nossos ouvidos, mas que barulho é esse? O que produziu esse som? Parece ambicioso querer saber a natureza do barulho logo na primeira vez que escutamos qualquer coisa, mas poucas coisas no universo são capazes de produzir um ruído desse calibre, então podemos listar as mais prováveis e ver qual melhor se encaixa no que escutamos.
Ondas gravitacionais são produzidas por objetos massivos acelerados, isso sabemos. No espaço, a única fonte de aceleração possível para um corpo massivo desses (tirando a expansão do universo e tal) é a presença de outro corpo massivo que, pela sua gravidade, puxa aquele primeiro. E o primeiro puxa também o segundo. Assim como o Sol puxa a Terra, a Terra também puxa o Sol, mas é mais ou menos um cabo de guerra entre uma criança de cinco anos e um levantador olímpico de peso, o Sol nem se mexe. Quando dois corpos bem massivos se encontram, de massas comparáveis, nenhum ganha no cabo de guerra e, ao invés de um orbitar o outro, ambos orbitam um ponto comum em uma bela dança conhecida como sistema binário, algo assim:
E isso causa alterações na gravidade em forma de ondas periódicas, exatamente o que o LIGO mediu, então é uma boa sugestão que esse sinal tenha vindo de um sistema binário. Mas a frequência e a intensidade do sinal aumentam e colapsam, terminando em uma linha praticamente reta como o sinal cardíaco de alguém em seu último suspiro. O que poderia ter causado esse fim ao sistema binário? A solução mais simples, os corpos do sistema binário se encontraram e viraram um só.
Um sistema binário costuma ser bem estável, assim como a Terra girando em torno do Sol é um sistema, felizmente, bem estável. Mas ao longo das centenas de milhões de anos esse sistema vai perdendo energia, muito em parte por emitir as tais ondas gravitacionais, e essa perda de energia faz os corpos irem se aproximando nessa dança. Chega uma hora que os parceiros desse baile se encontram, e a explosão monumental que ocorre foi o que o LIGO mediu. Pelos dados que temos, e pela teoria que sabemos, podemos medir a massa e o tamanho desses corpos massivos que, no final da dança, se fizeram ouvir pelos quatro cantos do universo: são, sem dúvida, dois buracos negros em um sistema binário que colidiram e se tornaram um.
Não há analogia possível para esse evento. Posso apresentar números, mas nada que qualquer cérebro humano seja capaz de conceber, de tentar entender. Um evento nessa proporção foge do que nosso cérebro foi condicionado para imaginar. Posso dizer quantas centenas de bilhões de bombas nucleares isso representa, mas essa analogia tanto é sem sentido quanto ainda está longe de representar a grandeza em termos de energia dessa colisão. Temos sorte de não estar nas redondezas, de não ver de mais perto o evento, essa explosão monumental, essa mostra de poder do universo, esse Krakatoa do cosmos.
Com os grandes progressos da análise computacional e de modelos calculáveis de relatividade geral, podemos simular em nossos computadores os valores desse explosão, programar em C++ o nosso próprio Krakatoa, e ver que tipo de onda gravitacional sairia disso. É com bastante alegria que digo que isto são as linhas coloridas do gráfico anterior, alinhando perfeitamente com o que foi medido. A história desse evento, que aconteceu todo em menos de um segundo, com buracos negros de massa dezenas de vezes maiores que o Sol se movendo a metade da velocidade da luz, é dada por esse gráfico:
E foi isso que foi medido entre Washington e Louisiana em setembro de 2015.
Eu gosto muito de física, e é difícil segurar o fascínio, e um pouco da emoção (sou clichê assim mesmo), quando contemplo algo parecido. A medição traz algo de pessoal a esse fato. Eu certamente conseguiria conceber uma colisão de estrelas, de buracos negros ou de galáxias teoricamente, eu já fiz exercícios na faculdade de coisas parecidas, mas isso tudo é impessoal, teórico demais; é muito diferente de de fato medir algo assim, saber que aconteceu, onde e quando.
Poderia parar o post por aqui, mas tenho recebido várias perguntas de “para que isso serve?”. Tenho minha resposta favorita a essa pergunta, mas resisto porque sei que nem todo mundo tem esse gosto pela coisa. Mantenho a analogia com a audição: ganhamos um sentido novo. Podemos medir coisas que antes não eram possíveis. Há diversos objetos que não interagem de forma eletromagnética, em especial matéria escura e energia escura (são “escuras” com um motivo), mas que interagem de forma gravitacional. Podemos agora ter esperança de medir eventos e objetos que apenas quem tem ouvidos pode escutar. Claro, ainda estamos na infância disso, nosso aparelho de audição pode melhorar bastante, ele ouviu algo porque a explosão foi bem grande, mas é um começo. O universo está rico em sons gravitacionais de várias fontes, e de várias formas, e, pela primeira vez, estamos escutando.