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O oposto da ciência

Rookie

Essa época de eleição me fez questionar diversas crenças e opiniões que tive desde muito. As opções não parecem boas, nada é claro, tudo é polarizado, tenho medo de perguntar a bons amigos de longa data em quem vão votar. Nos poucos debates políticos que tive, seja com amigos, colegas ou família, tive sempre bastante dificuldade em manter o teor da conversa no científico, no exato, na estatística e no número. É verdade que minha preferência por esses terrenos é clara, quero jogar em casa, mas sempre cri que eram o território mais justo para a avaliação de propostas e ideias. É só muito, muito difícil manter a conversa nesses termos. Eu quero a ciência, eu quero manter a conversa em termos científicos, mas sou vez após vez jogado no oposto da ciência e já não sei mais o que fazer.

Qual é o oposto da ciência? Se um cientista é alguém que luta pela ciência, contra o que ele luta? Certamente não é a ignorância, que é mãe e alimento da ciência. Não é a dúvida, que é a única arma eficaz que temos. Não é a opinião, que é base também do pensamento científico antes de ser provado. Se a ciência é o mecanismo de autoverificação constante de teorias, de desconstrução permanente da própria maneira de entender as coisas, se é a sistematização da coleta de dados e comparação com a realidade, então o oposto da ciência é o oposto dessas coisas. Não a ignorância, não a dúvida, não a opinião, o oposto da ciência é a conspiração e o amor à conspiração.

Esse é um post um pouco opinião, não sou filósofo da ciência. No entanto, queria dar algumas dicas para os que querem tentar debates políticos sem enforcar o amiguinho. Sendo físico, volta e meia estou em uma conversa com alguém que quer me convencer de que a última novidade em matéria de cura quântica e cristais é a penicilina do século XXI. Os instrumentos que desenvolvi para cuidar de minha sanidade mental nessas conversas são bem úteis para a situação política atual brasileira, em que muito é dito e pouco é transmitido. São também as maneiras que uso para me policiar e me impedir de acreditar em conspirações, de perceber quando estou com pensamento dogmático insalubre e preciso reavaliar essas opiniões. Este post é, então, meu guia de como eu lido com pseudociências, conspirações e outros disparates.

Tentei várias técnicas, tentei interrogar, aprofundar no assunto, tentei citar artigos, mostrar publicações que discordavam da pessoa, perguntar fontes, nada disso foi muito útil. Isso acontece porque toda conspiração tem uma propriedade fundamental para sua sobrevivência: ela insere em sua narrativa o próprio antídoto contra os fatos. Astrologia não prevê fenômenos específicos, prevê “tendências”. Nenhum homeopata receita pílula anticoncepcional diluída para a própria filha, mas receita contra gripe e angústia. É claro que você nunca viu extraterrestres, o governo os está escondendo e qualquer fato contrário que você possa levantar é rebatido com a eficácia do governo em esconder e ocultar isso da população ((Essa é a que mais me dói. Quem acredita nisso? Como eles acham que o governo é capaz de esconder um segredo desse tamanho com essa precisão durante tanto tempo? Essas pessoas já viram qualquer outra coisa feita pelo governo?)) . Essa é, na minha opinião, a característica principal de uma pseudociência ou conspiração: a habilidade profundamente conveniente de conter em sua fundação a resposta para todas as verificações possíveis. Aprenda a reconhecer isso para se policiar e se impedir de cair em uma via de raciocínio que começa com cristais e termina no triângulo mineiro alegando que você é a quarta vinda de Jesus Cristo.

Como aplicar isso em um debate? Você não consegue racionalmente colocar a pessoa em xeque-mate, ela sempre encontra uma justificativa nova para escapar pela tangente e achar que está ganhando. Ao invés de tentar cercar a pessoa em uma armadilha lógica, o que nunca funciona, lance uma pergunta inesperada. Pergunte: O que seria capaz de provar que você está errada? Diga para a pessoa propor uma maneira de verificação, qualquer que seja, por mais absurda que seja, por mais fantasiosa, improvável, irrealista que seja, cujo resultado, ainda que impossível de acontecer (porque a pessoa acredita que está certa), provaria que a pessoa está errada. Ao invés de fazer a pessoa invocar vez após vez o privilégio conspiratório de estar sempre certa, leve a pessoa a perceber o privilégio. Na minha experiência, essa pergunta faz a pessoa refletir.

Porque toda ciência tem mil formas de provar-se errada. Relatividade geral teria que ser revista se o periélio de Mercúrio fosse alguns graus diferente do que é. Mecânica quântica teria que ser reavaliada se experiências com feixes de átomos dessem um resultado diferente do previsto. Até proposições pessoais de que estou bem certo possuem um mecanismo assim: eu acredito que meu pai é meu pai e minha mãe é minha mãe, mas existe um teste possível, um teste de paternidade, que poderia provar que estou errado. Astrologia, homeopatia, ufologia, criacionismo, a Ursal, aquela teoria que você recebeu no WhatsApp de que o governo está envenenando crianças para eleger algum candidato, nenhuma delas pode ser provada errada. É importante dizer, meu critério aqui não é provar que estão certas. Não estou no negócio de provar nada certo, nada pode ser provado certo 100%, nem as melhores leis da física se garantem nesse nível. Mas uma afirmação que não pode ser provada falsa claramente está construindo um dique de segurança absurdo e indevido. Nada pode estar certo se não tem nenhuma chance de estar errado.

Os mais informados na parte de filosofia da ciência reconhecem o princípio, é a navalha de Popper, o grande filósofo da ciência do começo do século XX. Não é um princípio ruim e pode servir de base para você sustentar ideias e opiniões pela vida, dizer apenas coisas de que tem alguma certeza, e que têm alguma chance de estarem falsas.

Caso logo mais em novembro, e nessa época pré-casório ouvi diversos conselhos. Um deles me chamou bastante a atenção: não case com alguém que, caso um divórcio seja necessário, torne sua vida um inferno. Em outras palavras, não case com alguém de quem você não gostaria de se divorciar. É contra-intuitivo, é curioso, mas é coerente com o que considero o princípio fundamental da integridade intelectual: a verdade só existe se damos a devida chance a ela não existir, porque a verdade não tem medo de testes.

Nessa reta final para a eleição, respire fundo, debata com calma, lembre-se de questionar de forma sincera aquilo em que você acredita e tenha sempre uma boa forma de justificar suas opiniões e de se provar errado. Todo o resto é o oposto daquilo que chamamos de ciência.

O método científico

Geek

Aprendemos ainda no ensino primário sobre o método científico, e eu até lembro dessa aula. A professora trazia um ovo para a classe e pedia hipóteses sobre o destino do ovo ao ser jogado ao chão. Enumerávamos da mais óbvia à mais absurda, e por fim a professora abandonava o ovo e ele tocava o solo, estava completamente cozido e não fazia sujeira, para entendermos que o método científico é: observação de um problema, formulação de hipóteses, experimento controlado e conclusões.

Tornei-me cientista, pesquiso física, e ganho muitas caras de interrogação quando anuncio a alguém minha profissão. Cientista parece mais profissão de filme, um homem louco em jaleco cercado de vidros coloridos e de poucos amigos. Quando admitem que sou cientista, a próxima pergunta sempre é: “mas o que você faz, exatamente?”. E, para essa pergunta, e para dar uma versão mais real do método científico, listei alguns acontecimentos de um dia meu de trabalho e relato hoje com vocês. Nomeei-o “O método científico”, mas talvez título mais próprio seria “A Day in Life”. Esse post terá alguns detalhes científicos do que faço, é normal alguém de fora da área não os compreender, vou tentar explicar conforme escrevo.

9h30 Chego ao trabalho. Cheguei cedo, não costumo estar aqui antes das 10h, então aproveito para tirar de minha cadeira as coisas que o russo com que divido sala deixou ontem, escrever algo no blog, responder emails, preparar uma caneca de Earl Grey.

10h30 Passei uma hora fazendo o que deveria tomar quinze minutos, é a vida. Abro o Mathematica (programa que costuma fazer contas para mim, mas na realidade é minha cota de autoflagelação semanal). E eis meu problema de hoje: inverter uma transformada de Laplace (o que consiste a uma operação matemática bem difícil). Tento lembrar de minhas aulas sobre essa transformada, a razão de estar usando ela, tudo parece vago e um pouco difícil, vou só mandar o Mathematica fazer: InverseLaplaceTransform[f[s],s,t].

10h45 Mathematica está há quinze minutos na mesma conta, sem me devolver nada, é hora de aceitar a derrota e tentar achar um jeito mais inteligente de fazer isso.

12h Depois de alguma procrastinação com os colegas de laboratório que foram chegando, e depois de ter me forçado a manipular um pouco a forma exata da inversa transformada de Laplace, abandono qualquer esperança de resolver o problema exatamente. A forma exata é bem feia, chama-se integral de Bromwich, e não parece ser um bom caminho. Existem outros métodos, a fórmula de inversão de Post, mas tudo parece fadado ao fracasso, pois a função que quero inverter é, em um caso simples:

\[(100^{-6 – i – j} \Gamma[6 + i + j] \Gamma[-6 – i – j + s] \text{Hypergeometric1F1}[6 + i + j, 7 + i + j – s, 1/100])/ \Gamma[s] + 100^{-s} \Gamma[6 + i + j – s] \text{Hypergeometric1F1}[s, -5 – i – j + s, 1/100].\]

Vou abandonar e tentar fazer isso numericamente.

14h30 Voltei do almoço e parti para o Google buscando métodos numéricos de inversão de Laplace. Descobri como instalar coisas no Mathematica, isso é bem útil. Achei um método bom, chamado Piessens, e ele parece funcionar para funções cuja inversa da transformada eu já conheço (como $\frac{1}{s^2}$).

15h Eis o resultado do Piessens:

O que seria um resultado animador, se o que eu estivesse procurando não fosse uma probabilidade, e ainda não inventaram probabilidade negativa. Há algo errado ou com minha função, ou com o Piessens. Desço e compro um chocolate, preparo outro Earl Grey.

16h Minha função parece boa, o problema é no Piessens, e isso está me deixando nervoso. Durante minha palestra de exposição desse problema, um colega russo (não aquele com que divido sala) perguntou se não valia a pena abrir a série em Taylor e inverter termo a termo, eu respondi que não podia garantir a convergência, mas agora essa ideia parece animadora, tendo em vista a probabilidade negativa.

16h45 Maldito russo, aposto que ele nunca tentou abrir em Taylor e mandar a transformada. Sabe quem é a inversa de Laplace de $x^n$? A n-ésima derivada da delta de Dirac. Agora imagine eu com uma bela coleção de derivadas do delta com coeficientes diferentes para somar, de quê isso me serve? Era para ser uma probabilidade! Veio uma ideia: integrar essa probabilidade para ter a cumulada. Sabe o que acontece? A probabilidade de obter um valor menor que $r$ não depende de $r$ ! E a razão fica evidente uma vez que o método fracassa, só pode ser culpa da inversão da soma com uma operação integral, que pode ser resolvida com o teorema:

Teorema (da convergência dominada de Lebesgue): Ninguém troca integral com limite impunemente.

Vou tentar baixar outro método.

17h15 Achei um, chamado GWR, funciona para funções simples.

18h Eis o resultado com GWR:

E, depois desse gráfico, surge aquele pensamento de “o que estou fazendo com minha vida…?” aliado a uma vontade desenfreada de arremessar o Mathematica pela janela.

18h30 Depressão, seguida de raiva, dá lugar à aceitação. Fim de jogo, vou para casa, amanhã penso em outra coisa. Tento a barganha, ao menos, em um único dia, descobri três maneiras diferentes de não resolver meu problema.