A matemática das massas

Geek

A quantidade de dinheiro envolvida em eventos esportivos sempre me assombrou. Ignorando a massa de recursos investida da estrutura e preparação de tais eventos, os prêmios em dinheiro aos que conseguem correr mais rápido, chutar mais certeiro ou apostar dinheiro de forma mais inteligente estão na casa dos milhões. A Forbes faz uma lista anual, sendo o décimo colocado o vencedor de quatro milhões de dólares. Essa lista, no entanto, está desatualizada; é preciso colocar um novo candidato: DotA, um jogo eletrônico, oferece em julho um prêmio de 5 milhões de dólares ao primeiro colocado, com 10 milhões ao todo a serem distribuídos aos primeiros lugares. Como é possível um videogame superar Cricket nessa lista? Ou, ainda, como é possível cada integrante do time vencedor de DotA receber mais que os jogadores de baseball vencedores da World Series? Esse prêmio, como muitos financiamentos dos últimos dois anos, não vem de uma única pessoa ou empresa; ele é resultado de um longo e extremamente bem elaborado crowdfunding, um projeto financiado por milhões de indivíduos.

Deixo de fora da discussão o aspecto econômico ou preditivo desse fenômeno, não me arrisco a escrever um daqueles artigos de “10 maneiras de fazer seu crowdfunding dar certo!”. Gosto dos gráficos e da evolução desses financiamentos. Vejamos alguns:

1. Stop/Eject, projeto de fotografia de Neil Oseman

stop-eject2. Star Citizen

starcitizenIgnorem a linha vermelha, a azul é o financiamento!

3. Dota 2, The International 2014

dota2_20144. Dota 2, The International 2013

dota2_20135. Robot Dragonfly

robot_dragonflyEsses gráficos são bem diferentes e a esperança de explicar tudo com o mesmo modelo parece vã. Vou tentar construir um modelo matemático suficientemente simples para explicar a forma desses gráficos, e discutir os problemas do modelo. Vamos usar a técnica da teoria de cordas, criar uma teoria com tantos parâmetros livres que podemos plotar um coelhinho nos dados se quisermos.

Antes de continuar, precisamos combinar uma coisa. Todo modelo está errado, todo modelo é imperfeito e todo modelo é uma compromisso entre simplicidade e exatidão. Eu certamente deixarei de levar vários aspectos desse complicado fenômeno social em conta, e o trabalho do físico é exatamente esse: criar um modelo suficientemente simples para ser tratado e que considere os aspectos fundamentais do fenômeno.

O modelo que escolho para descrever crowdfunding é o modelo de Ising a temperatura nula. O nome é pomposo, mas o modelo é simples, levando em conta tanto a publicidade emitida pela fonte central do crowdfunding como a influência de seus amiguinhos para você dar ou não dinheiro ao projeto.

Nesse modelo, vamos construir uma rede quadrada de indivíduos, representando a sociedade alvo do crowdfunding. Cada pessoa é afetada por seus quatro vizinhos, seus amigos, da seguinte forma:

Cada indivíduo $i$ possui uma vontade de compra, um hype, representado pela letra $h_i$. Representamos cada indivíduo com uma coordenada $\sigma_i$, que vale zero se ele não contribuiu e 1 se contribuiu. Em meu modelo, se o hype é positivo, a pessoa contribui com o projeto. O hype é a soma de três fatores:

  • Marketing da empresa e vantagens do produto, representados pela letra B.
  • Influência dos amigos, representada pela letra $\sigma_i$.
  • Resistência pessoal à compra, representada pela letra $R_i$.

Assim, o hype sentido por cada pessoa será \[ h_i = \sum_{i\sim j} \sigma_j +B – R_i,\] onde $i\sim j$ significa “$i$ é vizinho de $j$”.

O raciocínio é o seguinte. Cada pessoa apresenta uma resistência $R_i$, uma variável aleatória tirada de alguma distribuição. A empresa aplica um “campo de marketing” constante em todos, aumentando ligeiramente o hype. Algumas pessoas possuem o $R_i$ baixo, então contribuem com o projeto com pouco marketing. Essas pessoas influenciam as que estão a sua volta, que aumentam seu hype contribuindo com o projeto. Se a soma do marketing $B$ com a influência dos amigos for maior que a resistência $R_i$ à compra, ele é mais um que contribui com o projeto.

Esse tipo de cálculo é muito difícil de fazer na mão, melhor deixar a computadores. Vamos ver o que acontece em cada iteração desse sistema. Tomemos 10.000 voluntários em uma rede 100×100. Começamos com uma distribuição de rejeição uniforme entre 0 e 5. Coloquemos um marketing inicial de 0.25. Com isso, aproximadamente 5% dos indivíduos vão contribuir com o projeto apenas com o marketing inicial. Após esse surto inicial, outros serão convencidos pela presença de seus vizinhos. O resultado é o seguinte

crowdfoundingPercebemos um crescimento inicial elevado seguido de saturação, o que é esperado. Você convence os amigos que pode até sobrarem apenas aqueles cuja rejeição é maior que o marketing aliado à influência dos amigos. Para conquistas mais adeptos, é necessário melhorar o produto ou o marketing. Vejam gráficos 3 e 5. Ambos representam drasticamente uma quebra no padrão, algo aconteceu nesses projetos. No primeiro, o campeonato de Dota, houve uma mudança na recompensa dada aos que contribuíram; em nosso modelo, isso significa um aumento de $B$. No Dragonfly houve uma divulgação em um jornal de grande porte, o que também é representado por um aumento de $B$. Vejamos o que acontece no gráfico anterior quando aplicamos $B=0.25$ até o instante 20 e passamos para $B=0.28$, um pouquinho mais elevado, após 20.

dota_2E fico feliz, porque o modelo parece funcionar.

Como explicar os outros gráficos? Noto que essa estrutura de crescimento com saturação aparece em todos os exemplos, pequenos acréscimos no valor de $B$ são capazes de explicar as variadas curvas. Em outras palavras, com boa vontade podemos explicar todos os exemplos como “corcundas” e “saltinhos”; representados pela figura anterior.

E que resultados analíticos podemos extrair desse modelo? Infelizmente poucos, o modelo de Ising com entradas aleatórias é um monstro do ponto de vista matemático, algo perto do que chamamos de vidros de spin. Esse é um assunto sempre quente na física estatística, a quantidade de coisa para fazer é alta e a dificuldade dos problemas torna muitos problemas fáceis de explicar quase impossíveis de se resolver.

Percebemos uma saturação, queremos calcular o valor dessa saturação. Infelizmente essa resposta não é simples, veja o que acontece quando eu rodo meu código várias vezes, com as mesmas variáveis do primeiro gráfico.

crowdfunding_2Deu para perceber que a própria saturação é uma variável aleatória. A razão dessa grande diferença na saturação de contribuintes com os exatos mesmos parâmetros tem origem geométrica. Como eu atribuo uma rejeição aleatória uniforme nos indivíduos, eu corro o risco de criar “ilhas de rejeição”, regiões na grade 100×100 cercada por gente que não contribuiria com o projeto por nada nesse mundo. Essas pessoas, se unidas, podem impedir que indivíduos que com apenas um ou dois amigos entrariam na dança, mas, cercados de negatividade, decidem não o fazer.

É possível ao menos saber a média dessa variável? Honestamente, não sei, defiro a alguém que saiba mais de vidros de spin, não é minha área. Tentei uma abordagem de campo médio, mas minha resposta é quase o dobro do que acho numericamente, o que não de todo inesperado. A abordagem de campo médio é equivalente a considerar todo mundo conectado a todo mundo, enquanto aqui cada um é conectado a quatro. No campo médio eu driblo os problemas geométricos, as ilhas de rejeição, e percebo que elas são fundamentais para explicar os resultados.

Não tenho pretensões preditivas com esse modelo, foi só uma diversão de final de semana. Precisava colocar algum conteúdo desde que eu tomei férias após o último post sobre política, aquelas animações foram duras e a recepção de vocês fez valer a pena. Não sei se continuarei postando sobre política, posto o que achar interessante, talvez as eleições me animem. Por enquanto vou criando modelos para explicar gráficos bonitos, preenchendo com isso meus finais de semana. E, claro, com Dota.

A valsa dos partidos, de Collor a Dilma

Rookie

Nesse primeiro de abril lembramos os cinquenta anos do golpe. Vi uma série de reportagens e matérias sobre o evento, sobre as causas e as supostas causas, mas pouco vi sobre onde chegamos desde então. Não sou historiador, não tenho calibre para escrever nada a respeito da história política, mas gosto de estatística e de analisar dados coloridos. Por isso, gostaria de compartilhar com vocês o resultado da aplicação de algumas técnicas estatísticas interessantes no estudo e análise do que tem sido a política brasileira desde o fim desse período sombrio de nossa história até os dias de hoje. Queria compartilhar a estatística da câmara dos deputados, os movimentos, fluxos e tendências, desde o governo Collor até a presidência de Dilma. Esse post é imenso, e extremamente incompleto. Preciso da ajuda de vocês para entender a maioria do que observei. Se você achou o post longo, basta ler o começo para entender como os gráficos funcionam e se divertir nos vídeos.

Como expliquei nos posts anteriores sobre o assunto, esse não é um blog de política e esse não é um post político. Comentários culpando os petralhas ou a privataria tucana não são tão bem-vindos quanto análises refletidas sobre os dados que vou apresentar. E tento manter meus comentários sempre no lado da estatística da coisa, não insiro nenhuma informação sobre a ideologia dos partidos nos dados e não faço juízo de valores das decisões dos governos de cada partido.

Antes de apresentar os dados, preciso explicar o que são esses dados. Como nos posts anteriores, eu uso como dados apenas os votos proferidos pelos deputados da câmara nos projetos de leis envolvidos naquele ano. Cada gráfico representa os deputados daquele mandato como pontos coloridos, sendo a cor referente ao partido. Pontos próximos significam deputados que votaram de forma semelhante. Pontos distantes significam deputados que votaram de forma muito diferente. Dessa forma, podemos identificar blocos e estruturas na política. Simplificando bastante, você pode imaginar o gráfico dividido em quatro quadrantes, a posição dos deputados e partidos nesse quadrante diz bastante sobre o lugar deles no cenário político:

quadrado

Ou seja, nesse gráfico os eixos não importam, o importante é a distância entre os deputados, essa sim significa alguma coisa. Eu pensei em mostrar as matrizes, como da outra vez, porque gosto bastante delas e porque elas representam a informação completa enquanto esse gráfico é uma projeção em duas dimensões de um problema a $N$ dimensões. Por motivos que eu pretendo algum dia terminar um post explicando, eu não perco tanta informação quanto vocês imaginam passando de $N$ a duas dimensões, essa é uma das maravilhas da técnica de análise de componentes principais. Esse fato é resultado da intensa polarização da estrutura política, mas isso eu discuto em outro post. Em cada gráfico, contei apenas deputados que votaram em mais de 30% das eleições em todos os anos daquela legislatura, a ideia é desconsiderar suplentes e gente que abandonou o barco para fazer qualquer outra coisa. Já tenho poucas votações, se eu os incluísse correria o risco de admitir um circo de estatística de péssima qualidade sujando meus dados, não podia correr esse risco.

E quais os dados desse gráfico? Usei apenas os votos de cada membro do congresso, ou seja, se eles disseram “Sim” ou “Não” às propostas que estavam em votação no plenário. Pela estrutura dessa conta, pouco importa se é sim ou se é não, eu estou interessado apenas em quando deputados votam de forma parecida ou divergente. Para quem gosta da matemática envolvida, uma frase apenas (que você pode ignorar se não entender): esse gráfico são as coordenadas dos dois componentes principais, ou seja, as coordenadas dos autovetores da matriz de correlação associados aos dois maiores autovalores, ponderados pelos autovalores.

Mas você, como eu e o Datena, quer as imagens. Sem mais, começamos com o primeiro, e mais turbulento, mandato da nova democracia brasileira.

  • Governo Collor/Itamar: 1991-1994

É complicado começar com esse período, porque ele é um dos mais complexos e interessantes. Os pontos que levanto aqui levam em conta os períodos seguintes, e o contraste que ele apresenta com os períodos de democracia mais estável.

O ano 91 apresenta uma política bem esparsa e pouco polarizada. Percebemos a região do governo dominada pelos herdeiros políticos dos partidos decorrentes do Arena: PP e PFL dominando essa região representando a “base aliada”. É complicado falar de governo e oposição em um mandato em que o presidente era de um partido minoritário, tão pequeno que foi excluído da análise, apresentou apenas quatro deputados na câmara e eu não queria gastar uma cor com o PRN, cores são preciosas nesses gráficos.

De 91 para 92 notamos uma polarização em um regime tríplice curioso. O governo é contrastado com duas oposições, de um lado o bloco PMDB-PSDB e do outro PT-PDT-PCdoB. Ainda que oposicionistas, esses blocos divergem entre si, criando essa tripla estrutura de poder que não dura muito tempo.

De 92 a 93 ocorre uma grande reviravolta no cenário político, o que imagino ser resultado da deposição do presidente em dezembro de 92. O resultado é uma espécie de governo de coalizão: base aliada e oposição se aproximam nas votações da câmara dos deputados. Eu nunca ouvi falar de tal processo, nem sei se era completamente conhecido, mas a estatística é clara: situação e oposição votaram de forma profundamente semelhante em 1993 contrastando drasticamente com o comportamento apresentado nos anos anteriores (e posteriores, como veremos).

Não me arrisco nas causas da coalizão, deixo a quem sabe do assunto. Poderia chutar que a queda do presidente e o temor de uma volta da ditadura poderia ter impulsionado os parlamentares a acertarem suas diferenças e terem votado, durante 1993, de forma semelhante em projetos importantes, ou a busca do presidente Itamar pelo apoio dos partidos mais à esquerda; mas posso estar, e provavelmente estou, completamente errado.

No final de 93, percebemos o PMDB migrando para a zona governista. Não quero estragar o suspense dos próximos vídeos, mas revelo que ele não sairá de lá tão cedo.

E onde está 1994?

Eu também gostaria de saber! Os dados que obtive da câmara mostram a convergência de dois fatores tristes para minha análise: em 94 houve um número extremamente reduzido de votações totais e uma proporção particularmente elevada de votações secretas, apenas 17 votações abertas dentre as 84 votações totais. Como base de comparação, tomemos os anos vizinhos: 93 teve 75 votações abertas e 179 totais, 95 teve 138 votações abertas e 248 totais. A pista para entender esse mistério talvez esteja no ano que é o segundo colocado em matéria de poucas votações abertas: 2002 (41 votações abertas e 116 totais). Aparentemente em anos de eleição em que há mudança de governo, há poucas votações e, dentro delas, uma proporção muito baixa de abertas. Não confirmo que essa seja a razão, ambos também são anos em que o Brasil ganhou a copa do mundo, deixo os números aqui para vocês e aguardo interpretações.

Uma palavra no código de cores. Os partidos progressistas são todos denotados na cor rosa porque, no futuro, irão se fundir. Isso foi uma decisão estética, falta cores no espectro visível para tantos partidos no Brasil. É importante também notar que o laranja, apesar de mesmo nome, não é o atual PSD, o “partido do Kassab”. Este PSD será extinto e o novo PSD irá se apropriar do nome, ele também se apropria da cor porque meu código de gerar esses gráficos é indiferente às sutilezas da política brasileira.

  • Governo FHC I: 1995-1998

O primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso representa uma grande estabilização na política nacional, definição razoavelmente clara de governo e oposição com uma forte base aliada composta dos partidos progressistas, do PFL, do PSDB e uma grande fatia do PMDB. Os movimentos durante esse período são suaves e eu não pude perceber nenhum fenômeno marcante na dança dos partidos durante esse ano. Percebemos um fato que se repetirá nos mandatos seguintes, parece ser uma lei da política brasileira: a cada mandato, a base aliada começa coesa e termina difusa. Nesse mandato, percebemos esse efeito mais claro no último ano. Minha interpretação é tão boa quanto a sua ou pior, mas isso pode representar a incerteza dos parlamentares quanto ao apoio que deve ser atribuído em ano de eleição. A difusão em 1998 é fraca comparada a 2002, o que pode ser explicado pela vitória esmagadora de FHC nas eleições de 1998, ou pode também ser explicada pelo fato de 98 ser a análise de mais de 100 votações enquanto 2002 apenas de 41. Ou seja, não tenho uma explicação muito convincente para esse comportamento.

Olhando esse gráfico, eu lembro do PMDB do senado em 2012, que estudei em outro post. Ainda que faça parte da situação essencialmente, ele é razoavelmente difuso e dança de acordo com o resto do conjunto. É fácil ver que o PMDB parece ser equivalente ao sistema total, apenas em escala menor. Para confirmar essa suspeita, precisamos do tira-teima, vejamos esse mesmo gráfico colocando o PMDB em destaque.

Esse gráfico mostra que durante o governo FHC I, como vai o PMDB, assim vai o Brasil. Fica a pergunta se o PMDB segue os movimentos da câmara ou se os define, mas uma coisa é clara: essa cauda do partido indica uma oposição enrustida em alguns de seus membros.

O maior problema desse período também é minha profunda falta de conhecimento das manobras políticas da época. O ideal é observar o gráfico, encontrar fenômenos e tentar explicar com as manobras, mas confesso que as manobras ajudam a ter algo para procurar. Fato é que entre meus sete e onze anos eu não assisti tanto ao Jornal Nacional, então minha conclusão final é: período tranquilo, bem definido com oposição reduzida e forte base aliada, sendo o PMDB o partido menos coeso, mais dinâmico e quase distribuído proporcionalmente em torno do espectro.

  • Governo FHC II: 1999-2002

Esse período apresenta um dilema na análise. Olhando de forma ingênua, podemos achar que a base aliada se desintegrou pouco a pouco conforme o governo avançava. Enquanto isso é coerente com o que leio do segundo mandato do governo FHC, o ano 2002 é particularmente problemático: até o PT parece se dispersar! Mas devemos lembrar que esse ano possui um número anômalo de votações, apenas 41, isso pode ser a maior causa da falta de coesão de todos os partidos. Usando um número tão pequeno de votações, podemos obter um resultado que não convergiu bem para a real coesão partidária, e certamente não tanto quanto os anos anteriores.

Notamos, contudo, a continuação da forte polarização governo-oposição, sendo a base aliada PSDB, PFL, PMDB, PP/PPB e PTB, a oposição liderada pelo PT e contendo PCdoB, PDT e PV, com o PL em terra de ninguém entre os dois mundos. Novamente, se alguém é um entendido no período, preciso de um norte para analisar esses resultados. A olho nu, não enxergo nada particularmente importante além da continuação do fenômeno de desintegração da base aliada no decorrer de um mandato. A explosão parece particularmente acentuada em 2002, mas não posso dizer o quanto disso é um efeito real ou da estatística precária que possuo. Pensei em fazer como 1994, que omiti, mas 41 parece mais justo que 17. Toda essa estatística não é de primeira qualidade, o fato de ter menos votações que deputados pesa, mas é o que tem para hoje. Fazemos o que podemos com o que temos.

O período seguinte é o governo Lula, mas prefiro estudar a fundo a transição FHC-Lula. Por si, ela valia um post, e é provavelmente a parte mais interessante desse post todo.

  • Transição FHC-Lula: 2001-2004

Lembrando que Lula foi eleito em 2002 e assumiu em 2003, o que é esperado em nossos gráficos? De forma ingênua, podemos esperar que os blocos oposição e governo troquem de lugar, como em uma quadrilha democrática, imaginamos que o movimento diagonal será intenso e que pouca gente ficará no mesmo lugar. E estaríamos errados.

E difícil analisar duas legislaturas diferentes, pois me parece injusto comparar quem saiu com quem entrou. Para evitar esse problema, reduzo o espaço amostral: nessa seção, analiso apenas os deputados que se reelegeram em 2002, ou seja, estavam presentes tanto em FHC II quanto em Lula I. Dessa forma, consigo segui-los durante os anos 2001-2004 sem me perder ou sem cometer injustiças. Vejamos o que acontece:

É muita coisa para seguir, mas conseguimos distinguir parte do comportamento esperado, e parte de um comportamento curioso. Enquanto há de fato uma troca entre oposição e governo, PSDB-PFL dançam quadrilha com PT-PCdoB-PDT-PL-PDT, trocando de lugares no jogo democrático quando o governo é assumido pelo presidente Lula. Mas há diversos outros partidos no balaio, e é fascinante como o movimento do PMDB-PP/PPB-PTB é drasticamente diferente dos outros partidos. Enquanto o primeiro grupo troca de lugar, o segundo estaciona e trata a mudança de governo com a naturalidade de uma quarta-feira. Para deixar esse fenômeno explícito, e provar que não estou inventando, reproduzo esse mesmo gráfico em dois: um com os partidos “ideológicos” (PT, PSDB, PFL, PCdoB, PDT, PL) em destaque e outro com os “governistas” em destaque.

 Não quero inserir juízos de valor nessa análise, quero bastante me conter, mas convenhamos, esses gráficos não parecem ser do mesmo período. Lembrando o que esse gráfico representa: em 2001, os deputados do PMDB, PP/PPB e PTB votavam profundamente alinhados com os votos do PSDB/PFL. Em 2003, esses mesmos deputados votavam exatamente como o PT votava! Certamente houve uma mudança na orientação partidária, nas alianças políticas, mas eu quero enfatizar que esse gráfico segue as mesmas pessoas. Em uma diferença de meses eles passaram de seguidores fiéis da direita tucana a apoiadores incondicionais de todas as propostas petistas de esquerda no plenário. O fenômeno é fascinante, e a matemática é implacável: esses deputados passaram por alguma experiência reveladora, como Saulo de Tarso, que os compeliu a se fazerem uma nova pessoa, um novo homem ou mulher, deixando para trás ideias que pregaram durante no mínimo quatro anos, e politicamente desde 1993.

Observando o gráfico com o foco nos ideológicos, percebemos o início da derrocada do PSDB. Notem que tanto PSDB quanto PFL deixam um “rastro” de deputados na base aliada, pontos azuis e roxos que se recusam a abandonar o barco quando afunda e preferem apenas pular para a nova embarcação vermelha que ancorou nas águas governistas. Entre o primeiro e segundo ano do governo, percebemos que esse rastro de deputados tucanos e frente-liberais é rapidamente absorvido em uma fagocitose política que não deixa traços. Foram eleitos pelo PSDB e PFL, essa foi a sigla que financiou suas campanhas de reeleição; mas entre maioria na câmara e integridade ideológica acabaram fazendo uma escolha bem definida. Fossem um ou dois eu poderia suspeitar de um avivamento esquerdista individual, mas a quantidade traz desconfiança.

  • Governo Lula I: 2003-2006

Estudamos esse governo em outro post, mas agora temos muito mais base de comparação com os governos anteriores. Enquanto naquele post eu disse que o comportamento de correlação entre as duas metades do primeiro governo Lula era compatível com a narrativa de um mensalão, revejo essa análise à luz dos dados dos governos tucanos anteriores. Parte desse movimento pode ser apenas esse fenômeno natural de desintegração da base aliada ao longo de uma candidatura. Ainda, o movimento petista em 2005 é ligeiramente diferente da dispersão normal, há um isolamento do PT em relação aos outros partidos da base aliada. Curiosamente, o PT volta ao centro da base aliada em 2006. Levanto duas possibilidades de explicação:

  1. O escândalo do mensalão isolou o PT em 2005, mas em 2006 a poeira havia baixado e a condição de normalidade se reestabeleceu.
  2. A desintegração da base aliada é um fenômeno natural, mas em 2006 as eleições presidenciais estavam praticamente certas e a base aliada não arriscou fazer compromissos com a oposição para poder mudar de barco caso afundasse.

Ou qualquer outra explicação que vocês encontrarem, não coloco minha mão no fogo por nenhuma análise política minha e quero deixar isso bem claro. É fundamental notar o caminhar da oposição durante esse mandato. A política brasileira desde 2003 tem sido a história da derrocada dos partidos de direita. Compare a força oposicionista (distância da base aliada e coesão partidária) petista durante o governo FHC e a força da oposição ao governo Lula. Não se enganem, notem a escala dos eixos, a distância horizontal é muito mais importante que a vertical. Matematicamente falando, nesse período PSDB e PFL votaram de maneira dispersa e não confrontam a base aliada na mesma ordem de grandeza que a oposição de períodos anteriores. Houve uma tentativa de coesão em 2005, provavelmente resultado do escândalo político dando força à oposição, mas 2006 amanheceu um novo ano e o PSDB explodiu na direção da base aliada.

  • Governo Lula II: 2007-2010

Lula foi uma poderosa cola na base aliada durante seus oito anos de mandato, e particularmente nos quatro últimos. A presença do PMDB se revela mais uma vez fundamental para o poder da base aliada: se os verdes estivessem no outro canto do gráfico, o PT passaria poucas leis durante o mandato de Lula. A base aliada é composta majoritariamente de PT-PP-PMDB-PR, enquanto oposição é PSDB-PFL/DEM.

Se a oposição terminou o primeiro mandato de Lula aninhando-se na base aliada, ela começa novamente bem longe e suficientemente coesa, para ir novamente se aproximando e se difundindo. É notória a presença do PSOL, seus três deputados como um sistema ternário de estrelas passeiam pelo espectro representando a coesão do partido e seu caráter oposicionista.

Percebemos a crise do PFL nesses dados, não apenas por sua mudança de nome para DEM. Note o que é esse mesmo período, focando apenas os frente-liberalistas:

Não apenas esse partido, central na base oposicionista desde 2003, visita constantemente a base aliada; ele pouco a pouco se dispersa e cede à tentação de abraçar a zona governista. O PSDB segue em parte, na natural aproximação entre base aliada e oposição que parece ocorrer ao final de cada mandato. O movimento do DEM se completará no governo Dilma, e sua trajetória de 1991 a 2013 não terá final feliz.

  • Governo Dilma: 2011-2013

Chegamos aos dias de hoje, e o governo Dilma apresenta uma estatística rica e, em minha opinião, mais interessante que a dos predecessores. O primeiro fenômeno observado é o surgimento do PSD, que não é o mesmo PSD de antes, a falta de originalidade no nome reflete minha falta de originalidade nas cores. Esse novo PSD é o tal “partido do Kassab”, e se alastra na região central do espectro político como uma epidemia que varre o DEM e pesca alguns parlamentares da base. Os democratas hesitantes do governo Lula encontram casa nesse novo PSD, e vale estudar esse fenômeno com mais cuidado para determinar exatamente de onde são recrutados os novos integrantes desse partido.

A criação do PSD consuma o destino do PFL/DEM, e completa sua trajetória de majoritário na base aliada em 1991 a uma sombra do que já foi em 2013.

Outro fenômeno interessante aparece durante o governo Dilma. Em outras legislaturas, pudemos observar a difusão da base aliada como um processo natural, mas há algo diferente no governo Dilma. Não é uma simples difusão, em 2012, o PT é isolado na base aliada, enquanto o restante dos partidos migra para uma região central formando uma segunda base governista. Pela primeira vez desde 1992 temos novamente uma estrutura com três polos de poder político: PT-PCdoB no topo da base aliada, o grande bloco governista PMDB-PP-PTB-PSD e o que chamávamos de oposição PSDB-DEM.

Nesse contexto em que as divergências entre o bloco central e o PT são grandes, vale questionar nossas noções antigas de oposição e base aliada. Ainda que o vice-presidente seja peemedebista, as correlações entre PMDB e PT parecem se deteriorar bastante conforme Dilma vai governando. A base aliada não se torna exatamente difusa com o tempo, ela se polariza em duas, como se o PMDB decidisse formar sua própria base aliada e não convidasse Dilma para a festa.

  • Conclusões?

Não tenho conclusões próprias desse experimento. Os gráficos estão corretos e minhas análises provavelmente erradas, peço novamente a contribuição de vocês para lerem esses dados e apontarem o que esqueci ou inventei. Como isso é ciência, divulgo o conjunto dos dados usados e os dados brutos, bem como os vídeos para download aqui. Façam suas próprias análises, questionem meus gráficos e combatam minhas afirmações, analisem como acharem adequado e justo; esse é o único jeito de se fazer ciência, o único de se chegar a uma resposta certa.

Minto, talvez tenha uma conclusão. Os gráficos que apresentei colocam em xeque uma noção política que tentamos usar no Brasil, mas falhamos: nossa tentativa de rotular partidos e parlamentares como de esquerda ou de direita. Em uma conversa de bar, se você perguntar sobre parlamentares de direita, provavelmente ouvirá como resposta a bancada evangélica, Jair Bolsonaro, Paulo Maluf; entre outros. Jair Bolsonaro e Maluf são do PP (base aliada), enquanto em 2013 foram considerados líderes da bancada (evangélica) os parlamentares João Campos (PSDB-GO), Anthony Garotinho (PR–RJ), Eduardo Cunha (PMDB-RJ), Lincoln Portela (PR-MG) e o senador Magno Malta (PR-ES) (Wikipédia), notamos que apenas o primeiro deles pertence a um partido dito de direita, os outros todos são membros de partidos profundamente enraizados na base aliada petista, nominalmente um governo de esquerda. Junte isso ao FHC, grande cacique do PSDB, defendendo abertamente a legalização da maconha para ter uma imagem colorida do que é a política brasileira.

À luz dos dados, e da valsa que foi acompanhar o espectro político durante 22 anos, não consigo mais usar termos ideológicos para a política brasileira. Não é desilusão, é estatística; esses dados são isentos de ideologia e mostram com quem cada parlamentar votou. Essa dança de pontos parece ser mais facilmente explicada como conjuntos de parlamentares que conseguiram alianças ou não conseguiram alianças, suas opiniões em programas sociais, dívida pública, direitos contraceptivos, privatizações ou direção econômica não parecem valer dois centavos, já que um mesmo parlamentar pode em 2002 apoiar azul e em 2003 votar exatamente como vermelho.

Isso me parece um resultado natural de nossa cultura política. Não votamos em partidos, votamos em indivíduos, em parlamentares individuais. Nessa lógica, o indivíduo ganha força sobre o partido, o que traz a riqueza desses gráficos. Se essa análise fosse feita na França ou nos EUA, os gráficos nos matariam de tédio, os partidos possuem muita força e um parlamentar que sai da linha não é facilmente perdoado, todo gráfico seria composto de blocos extremamente coesos e distantes. A quantidade de partidos e sua distribuição de tamanho seriam também muito diferentes: nos dois países mencionados eu poderia fazer este gráfico em preto-e-branco, enquanto aqui falta frequência no espectro visível para tanto partido; se eu precisasse representar o PSC eu teria que usar infravermelho.

Retomando a origem deste post, temos o golpe de 1964. Nele, alguma direita acusou a esquerda de uma tentativa de golpe e, para evitá-lo, tomou a iniciativa. Atualmente, essa noção está tão longe de nossa política quanto os gols de Pelé daquela época estão de nossa seleção. Se levantarem em nossa conversa de bar reclamações sobre o direitismo de Jair Bolsonaro, podemos argumentar que o partido de Bolsonaro foi estatisticamente indistinguível do PT durante o governo Lula. Suas declarações pouco importam, seu impacto é nos votos. Nessa discussão podemos ouvir que o PSOL é o único partido verdadeiramente de esquerda do Brasil, e podemos responder que ele foi estatisticamente mais próximo do PSDB que do PT ou do PCdoB durante todo o governo Lula e em 2011 os três deputados psolistas foram quase estatisticamente indistinguíveis de um típico deputado tucano. E se isso é uma conversa de bar, preciso perguntar: há direita no Brasil? Há esquerda? Não tenho respostas para essa pergunta, essa hipótese não foi necessária para minha análise. Tenho partidos vermelhos, azuis, verdes, rosa, cinza e laranjas surgindo, morrendo, brigando, valsando e compondo com complexidade e riqueza sinistras a câmara dos deputados, e, nela, definindo os rumos dessa nação.

Ecos do passado

Rookie

Abri hoje um site de notícias brasileiro, esperando ler sobre o grande evento do dia. Estadão, Folha, Uol, nenhum deles tinha nem na parte de ciência qualquer informação sobre o grande acontecimento vindo do polo sul, e dos confins do universo.  O New York Times o registra, felizmente, colocando em destaque na página principal. O destaque não é completo, a notícia está abaixo de uma análise sobre Putin e abaixo da morte da namorada do Mick Jagger. Com todo respeito à família da Sra. Scott, e com o povo na Crimeia, essas notícias não estão em proporção.

Cientistas em um observatório no polo sul anunciaram a detecção de ondas gravitacionais. Quem teve aula de relatividade geral e atravessou a aula de ondas gravitacionais lembra do amargo na voz do professor quando esse anunciava que o assunto da aula do dia nunca havia sido detectado, que aquela aula não estava tão longe de se estudar a anatomia do Pé-grande, mas essa notícia não veio apenas para confirmar, mais uma vez, a teoria de Einstein. Se fosse apenas mais uma prova de que uma teoria de 99 anos está correta, não merecia tanto espaço. O que foi feito no polo sul, no entanto, merece o Nobel.

O impacto dessa descoberta precisa de uma historinha para ser entendido, e é uma história bem antiga. Aliás, é a mais antiga: no princípio, houve uma explosão. Ninguém sabe exatamente o que aconteceu entre o segundo zero e $10^{-34}$ segundos, mas os astrofísicos e cosmólogos têm muitas teorias que começam a valer a parte dessa marca dos $10^{-34}s$. A melhor delas é a da inflação cósmica: o espaço-tempo expandiu de forma drasticamente acelerada e em seguida diminuiu a taxa de expansão. Essa teoria surgiu para explicar muita coisa estranha nesse nosso universo, muita gente tenta ajustar nessa teoria grandes questões não-explicadas, desde problemas na formação de galáxias à grande desproporção entre matéria e antimatéria no universo. Essa inflação deve ter causado muito alvoroço no universo, mas aconteceu em um passado tão remoto que muitos achavam impossível encontrar qualquer traço direto dela hoje. Muitos achavam, mas não todos.

Existe uma boa quantidade de radiação atingindo a terra que vem de um período muito antigo no universo. Essa radiação é como um barulho de aparelho eletrônico ligado em seu quarto, muito baixa, imperceptível, vindo de todos os lados. Recebemos essa radiação porque ela ainda está “chegando à Terra”, desde aquele período. A grande descoberta vinda do polo sul é sobre a polarização dessa luz. Eu comentei um pouco sobre polarização neste post sobre a luz, mas a ideia é que uma luz polarizada está oscilando em uma direção específica. A radiação cósmica de fundo está também oscilando em uma direção específica, dependendo de onde você a observa. O mapa de “direção de oscilação” é o que revela a natureza dessa descoberta, ele é algo assim:

Esse perfil na polarização da radiação cósmica de fundo é um resquício de uma época em que as ondas gravitacionais eram fortes o suficiente para deixar marcas nesse espectro. Ainda que elas atualmente sejam fracas demais para serem detectadas pelos instrumentos que temos, como se estivessem extintas, a imagem acima é o fóssil da inflação, como um inseto preservado em seiva de árvore que vem nos contar de um tempo em que o universo era jovem e cheio de problemas.

Para ser claro, não foram detectadas exata e diretamente ondas gravitacionais, e há gente séria trabalhando nisso, assim como nunca encontramos um dinossauro. Mas os ecos dessas ondas foram descobertos, e o escrutínio da comunidade científica será intenso para confirmar se as tais ondas são de fato a única, ou a melhor, explicação para esse quadro lindo de azuis e vermelhos que observamos na imagem acima.

A manchete no jornal deveria ser: primatas em um pedaço de rocha flutuando em torno de uma estrela mediana contemplam de relance informações sobre a origem de todo o universo. Formas de vida à base de carbono, usando giz, lousa e instrumentos fabricados na rocha, são capazes de deduzir detalhes sobre explosões de escala cósmica, sobre a formação das bilhões de bilhões de estrelas, das bilhões de galáxias, revelando um pouco mais sobre nossa relação com o cosmos, nosso lugar nele, nossas origens e nosso destino.

A meu engenheiro químico favorito

Rookie

Esse post foi escrito a um grande amigo, quando este ano passado prestou o curso de engenharia química e passou. Apesar de nossas rivalidades, engenharia química é a fusão de duas rixas velhas de estudantes da graduação de física, aprecio e admiro o trabalhos desses cientistas.


A meu engenheiro químico favorito.

Como você deve saber, físicos e químicos possuem aquela rivalidade saudável entre duas ciências bem resolvidas. Ambas são torturadas durante o ensino médio, ambas são detestadas por todos os seus amigos menos eu e ambas, durante sua aprendizagem até a faculdade, contam muitas mentiras. Certo, admito que mentira é uma palavra forte, seria mais educado dizer que os ensinamentos são incompletos e imperfeitos, porque quem tem problemas com U=R.I dificilmente conseguirá apreciar a quântica. Não porque ela é difícil, mas porque ela exige base, maturidade científica, sobriedade no raciocínio; nenhuma matéria na física é realmente difícil se você possui esses três elementos ((Exceto mecânica dos fluidos. Mecflu é só crueldade.)) .

E tem algumas coisas que eu queria compartilhar com você nesse ingresso de faculdade, coisas que demorei a aprender e entender, e que mudaram a maneira como vejo o mundo. Elas envolvem os tijolos de suas futuras construções teóricas: os átomos. Química é a arte de explicar o que acontece quando dois átomos ou mais se juntam, dessa pergunta saem tantas grandes realizações do século XX: o plástico, o poliéster, tantos medicamentos, cosméticos e cada pixel da tela de seu computador. Química estuda $n$ átomos juntos, formando moléculas, compostos, colóides, sempre com $n>2$. Isso porque se $n=1$, a bola ainda está no território da física.

Confesso que isso não é completamente verdade, porque o átomo de Hélio, por exemplo, já representa um desafio hercúleo para um físico calcular, sendo necessários os melhores computadores atuais para conseguir boas respostas para a perguntas que fazemos sobre esse gás nobre. Quem realmente é a prata da casa é o hidrogênio, nosso átomo favorito, pois possui apenas um elétron. Não temos nada contra prótons, eles podem aparecer em números grandes, nosso problema é com os elétrons. Neste breve texto, vou comentar algumas coisas legais que conheço dos três elementos do átomo de hidrogênio: o elétron, o nêutron e o próton. Com isso em mente, você deixa sua imaginação livre para formar quantos compostos, moléculas, redes, estruturas, plásticos e remédios você quiser.

Como você imagina um átomo? Essa é a primeira imagem que o Google nos dá quando buscamos “átomo de hidrogênio”:

Essa é a visão tradicional do átomo, aquela do ensino médio. Quando você aprende um pouco mais de física ou química, descobre que nada é parecido com esse pequeno sistema planetário que nosso professor desenha na lousa, que a palavra “camadas” faz bem menos sentido do que você imagina. Vou tentar construir aos poucos a ideia do átomo de hidrogênio, começando pelo elétron no post de hoje.

Por enquanto, esqueça tudo o que sabe do átomo. Imagine apenas um ponto central, que chamamos de núcleo. Nele moram prótons e nêutrons, mas vamos ignorar isso por enquanto. Em volta desse núcleo há uma carga negativa, que chamamos de elétron. Sabemos que ele está lá porque somos capazes de medi-lo, podemos jogar um fóton (que é, grosso modo, um pouco de luz) e veremos que o fóton é rebatido em algum ponto em torno do núcleo. Esse ponto era a posição do elétron quando foi atingido. Como de costume, e mediante protestos, o elétron será azul e o próton vermelho.

atom_1Eu posso me perguntar se existe a noção de órbita do elétron, posso querer saber por onde ele passa e para onde vai. Eu efetuo 100 medidas da posição do elétron, terei algo parecido com isso:

atom_2Os pontos azuis são agora medidas do mesmo elétron, em momentos diferentes. Como é fácil perceber, fica bem difícil falar em órbita, e fica ainda mais difícil acreditar naquele desenho dos círculos perfeitos. Para garantir, vamos tomar 1000 medidas da posição do elétron:

atom_3Isso é o registro da posição do mesmo elétron em vários momentos diferentes, o que nos obriga a repensar bastante sobre o que sabíamos do elétron. Por esse e alguns outros motivos, passamos a algumas noções mais radicais sobre as partículas elementares: A noção de trajetória já era. Não apenas não podemos dizer que ele gira em círculos, não podemos nem dizer que ele gira, nem podemos falar de sua trajetória, pois nem sabemos se existe uma.

Você pode objetar dizendo: mas é claro que existe uma trajetória, ela só é muito complexa. E por mais que isso pareça razoável e você queira que seja verdade, nenhuma evidência que temos aponta para esse lado. O máximo que podemos dizer do elétron é que ele tem uma probabilidade maior de ser medido próximo do núcleo que longe do núcleo, afinal, você percebe que a maior parte das medições caiu na zona vizinha ao próton. Podemos descrever qual a probabilidade de ele ser encontrado a uma dada distância do centro.

atom_4Essa figura é uma densidade de probabilidade, não é difícil de ler. Se você quer saber qual a chance do elétron estar em uma região entre $r_a$ e $r_b$, basta calcular a área da curva entre esses dois pontos e essa será a probabilidade.

atom_5Ou seja, a chance do elétron estar, em uma medida, entre $r_a$ e $r_b$ é a área da região azul. Notamos que há um pico nessa probabilidade, os valores perto desse pico são os mais prováveis. O raio que possui a maior probabilidade é chamado raio de Bohr, e, em muitas aproximações, o átomo pode ser considerado uma esfera maciça cujo raio é o raio de Bohr.

O mais agoniante nisso tudo é que essa densidade de probabilidade é toda a informação que temos sobre a posição do elétron, e a física, como é escrita hoje, parece nos indicar que esse é o máximo de informação que teremos nessa área da vida do elétron. O desenho do ensino é bem intencionado, porque seria difícil ensinar a alunos do ensino fundamental e médio (e também seria difícil cobrar em prova) que há muito que não sabemos e não poderemos saber, e que isso não é um problema. A ciência não é feita de verdades absolutas, mas de verdades em construção, modelos que se aproximam cada vez mais da realidade. Na física quântica, podemos apenas encontrar as probabilidades das partículas estarem onde as medimos, e isso já é bastante informação a respeito delas.

Se você der mais energia a esse elétron, dizemos que ele mudará de camada. Em um primeiro momento, ele absorve uma quantidade precisa de energia, nem mais, nem menos, e passa a ser medido em uma região idêntica à anterior, mas com a possibilidade de ir mais longe. É meramente um aumento no raio de Bohr, chamamos essa situação de um elétron na camada 2s. Se você dá mais energia ao elétron, ele começa a se comportar de um jeito bem diferente. A próxima camada, chamada 2p, é dramaticamente diferente. Se eu medisse um mesmo elétron em torno do átomo de hidrogênio mil vezes, e se esse elétron estivesse na camada 2p, esse seria um resultado possível de minha medida:

atom_7Note que eu continuo tendo uma preferência a estar perto do núcleo, mas noto que o elétron parece gostar mais de estar ou do lado de cima ou do lado de baixo, é quase impossível encontrar elétrons no anel lateral do átomo! Volte àquele desenho inicial e reflita sobre como ele é problemático. Os elétrons não giram em torno do átomo, a noção de trajetória nem existe, conseguimos apenas definir essas formas de probabilidade de medir o elétron em um lugar ou outro. Essa forma é a superfície na qual é igualmente provável encontrar um elétron. No caso das camadas 1s e 2s, essa superfície é uma esfera. A chance de encontrar um elétron afastado de uma distância $a$ do núcleo é a mesma para todos os lados, por isso dizemos que o orbital dessas camadas é uma esfera. No caso da 2p, vemos que essa forma muda, e ela será parecida com isso:

Com isso, em um abuso de linguagem, dizemos que o elétron “mora” nesses orbitais. A definição de orbital, contudo, não é o confinamento dos elétrons, mas as regiões equiprováveis de presença do elétron. Sabemos que a probabilidade de encontrar um elétron diminui exponencialmente quando nos afastamos do núcleo. ((Não estou usando exponencialmente como sinônimo de “grande” ou “bastante”, é literalmente exponencial!))

Quando você estava no cursinho, deve ter ouvido falar desses orbitais e das formas bonitinhas. Esse post é para tratar orbitais e elétrons de forma mais coerente com o que sabemos hoje em física, falando da incerteza da posição, a ausência da trajetória, as medidas de probabilidades, é isso o que sabemos sobre o elétron. Uma molécula envolve muitas vezes o compartilhamento de elétrons, e um orbital partilhado terá uma forma bem mais exótica que essas apresentadas pelo átomo de hidrogênio. Conforme você dá mais energia para o elétron, ele começa a poder ser encontrado mais longe do núcleo e, ao mesmo tempo, assume as formas mais estranhas de orbitais. Quando você vê um desses desenhos de orbitas, pense: a chance de eu encontrar um elétron é a mesma em todos os pontos dessa superfície.

A origem dessas formas é a equação de Schrodinger, uma equação diferencial bem complicada que só pode ser resolvida exatamente para o caso de um elétron. Para mais elétrons, ou moléculas, ainda conseguimos resultados numéricos, ou seja, chicoteamos o computador até ele calcular essas formas com precisão para as moléculas que queremos. Mas fórmula exata, dessas bonitinhas que se cobra em prova, não temos, nem sabemos se existe.

Outra propriedade interessante dos orbitais, e dos elétrons em geral, é o princípio de exclusão. Tome, por exemplo, o orbital 2p, essas duas gotas. Se você tiver três elétrons em um átomo com a energia desse orbital, cada elétron ocupará um orbital em uma região diferente, serão ocupados os orbitais 2px, 2py e 2pz. Se você juntar outros três elétrons, cada elétrons entrará em um orbital e esse será o limite de ocupação. Você nunca consegue colocar mais que dois elétrons por orbital! Por mais que você tente calibrar seu elétron para entrar no orbital 2p, ele não será absorvido. A razão eu já mencionei uma vez quando disse o quanto me impressionava o princípio de Pauli, um dos resultados mais profundos e misteriosos da física.

Ao final do dia, o desenho tem um mérito. Ele representa camadas mais energéticas com círculos maiores, como se o elétron girasse com um raio maior. Isso não é verdade, ele não gira e não tem raio, nem trajetória tem, mas em camadas mais energéticas a chance de encontrar o elétron mais distante do núcleo é maior, como se ele tivesse mais “velocidade” e pudesse passear mais longe antes de ser puxado de volta para o núcleo.

E isso encerra o que queria te contar sobre o elétron, e espero que isso te guie um pouco por suas primeiras aulas de química, e te prepare para a desconstrução daquilo você você achava que sabe e que, como verá, ninguém parece saber.

Eleições indiretas e o conjunto de Cantor

Rookie

Timothy Gowers é provavelmente um dos maiores matemáticos vivos. Recentemente em seu blog, propôs uma explicação matemática para o problema americano de representatividade eleitoral; achei fascinante e decidi explorar um pouco essa ideia. Vamos falar hoje sobre eleições indiretas e sobre como posicionamento é, muitas vezes, mais relevante que números.

Os Estados Unidos possuem um sistema eleitoral indireto confuso o suficiente para merecer um diagrama da Folha de São Paulo a cada eleição americana. É um sistema a dois níveis com algumas sutilezas, cada estado tem seu peso, alguns estados decidem aplicar todo seu peso no candidato vencedor enquanto outros aplicam pesos proporcionalmente ao resultado de suas eleições. Veremos que ainda nesse caso a poucos níveis alguns problemas curiosos podem surgir.

Existem instituições com mais níveis de eleições indiretas, como, por exemplo, a Igreja Presbiteriana do Brasil. Nela, membros de uma igreja elegem alguns dentre si para serem os presbíteros, os presbíteros de várias igrejas se reúne; para eleger o supremo concílio e o supremo concílio elege seu presidente. Nessa lógica, há quatro níveis entre o presidente do supremo concílio e um membro da igreja. Esse método possui suas vantagens, a alternância de poder certamente é um antídoto ao culto à personalidade tão danoso ao proposto por muitas religiões; mas veremos que uma das consequências imediatas das eleições indiretas é a possibilidade de manipulação por posicionamento.

Vou usar um exemplo simples: o triunvirato. Imagine um país em que o presidente é eleito por três “sub-presidentes”, e precisa de dois dos três votos para ser eleito. Cada um dos sub-presidentes é eleito por três sub-sub-presidentes, e cada um precisa de dois dos três votos de seus sub-sub-presidentes para ser eleito. Imagine que isso acontece indefinidamente, até que toda a população foi contabilizada e contada nesse processo.

Para eleger o presidente que quero, preciso apenas ter na minha mão 2 dos 3 sub-presidentes, basta que eu eleja os sub-presidentes certos para realizar meu plano. E para eleger cada um deles, preciso ter sob minha influência 4 sub-sub-presidentes, dois para cada. É fácil perceber que em um sistema de $k$ níveis de eleições indiretas eu preciso apenas convencer um múltiplo de $2^k$ para meu projeto, enquanto a população, ao todo, é um múltiplo de $3^k$. Com alguns níveis, esses valores ficam completamente diferentes! Com dois níveis eu precisaria apenas de $\frac{4}{9}$ dos votos para eleger o presidente, menos da metade da população, sendo que eu estabeleci um critério mais exigente que o das eleições convencionais, exijo dois terços dos votos para eleger qualquer pessoa! Com quatro níveis, no caso da igreja, bastaria apenas $\frac{16}{81}\approx 20$% dos votos totais.

Esse sistema do triunvirato é familiar aos matemáticos, é conhecido como o conjunto de Cantor. Um dos melhores testes para um teorema em teoria da medida é aplicá-lo a um conjunto doentio e ver se ele ainda vale, e o de Cantor é o exemplo mais tradicional de quebra-teoremas nessa área. Para entender o que é esse conjunto de elementos, comece com o intervalo $[0,1]$ e tire o “terço médio”, ou seja, divida em três e tire o pedaço do meio. Com os pedaços que sobraram, divida cada um em três e tire o terço médio. Repita isso até cansar. Os elementos que sobrarem formarão o conjunto de Cantor:

cantorsetÉ fácil ver que isso é exatamente nosso sistema de votação. A primeira barra é o presidente, a segunda são os sub-presidentes que devo convencer (o do meio posso ignorar, não preciso dele), a terceira são as pessoas que preciso convencer para que os de cima sejam eleitos. A quantidade de linha que resta é o quanto em população, proporcionalmente, preciso convencer para eleger o presidente. Quanto mais níveis de eleições indiretas, menos população eu preciso convencer. No conjunto de Cantor, a quantidade de linha que sobra é cada vez menor, dizemos que a medida do conjunto é nula quando o número $k$ é infinito.

Esse problema é mais grave do que se imagina. Se quiséssemos saber quantas pessoas teríamos que convencer para eleger o presidente, basta tomar a população total e ir subtraindo aqueles que não nos interessam. No primeiro nível, subtraímos logo $\frac{1}{3}$ do eleitorado, que votaria no vice-presidente que não nos interessa. Analisando as vice-presidências, poderíamos excluir $\frac{1}{3}$ de cada uma delas. Como cada uma delas já é $\frac{1}{3}$ do total, isso seria o equivalente a subtrair $\frac{2}{9}$. No próximo nível, é fácil ver que teríamos que subtrair $\frac{4}{27}$ da população. Ao todo, essa soma é:

\[ \frac{1}{3} + \frac{2}{9} + \frac{4}{27} + \cdots + \frac{2^n}{3^{n+1}} = 1 \]

A afirmação acima você pode verificar com sua fórmula favorita de somas de progressões geométricas infinitas. O resultado final é que teremos excluído todos os habitantes! Claro, isso é um absurdo decorrente de levar a soma ao infinito, de achar que há níveis infinitos de votações, o que isso realmente quer dizer é que aumentar o número de níveis do triunvirato significa se aproximar dessa realidade distópica em que uma minoria ínfima é capaz de eleger o presidente de uma democracia.

Os Estados Unidos são o exemplo mais gritante de práticas de “posicionamento” de eleitores para garantir a eleição indireta. Em nível regional, para as eleições de parlamentares, essa tática é chamada de Gerrymandering. A página da Wikipédia faz um bom trabalho na explicação, e as imagens são assustadoras: a redefinição de fronteiras para garantir um voto republicano ou democrata seria capaz de explicar a estabilidade de certos governantes; gente que pode quase levar o país à falência por um jogo político, com a garantia de reeleição porque o viés cultural de sua região é tão grande que não há o que temer.

Nós, contudo, temos o que temer. Diretas já não foi apenas um movimento social, foi também estatístico; representatividade indireta é sempre uma solução arriscada e falha quando o objetivo é transferir preferências pessoais a coletivas. Nos EUA, o resultado são os swing states, estados capazes de definir a eleição, ganhando por isso muito mais atenção na campanha política e deixando outros estados, incluindo Nova Iorque e Texas, órfãos de política nas presidenciais. A solução é simples: uma pessoa, um voto, e uma conscientização da população sobre o processo político. Contudo, esse blog nem sobre isso é, os fatores são muitos, a soma é quase infinita, mas acredito, de verdade, que converge.