Infinitos

Rookie

Certa feita, conversava com meu cunhado, um publicitário, e o assunto naturalmente convergiu aos números transfinitos. Como ele havia tentado me explicar como poderia existir uma propaganda tal qual a da Dolly, tentei convencê-lo de que nem todos os infinitos são iguais, alguns são maiores que outros. A explicação foi algo parecida com isso: quantos elementos tem o conjunto dos números naturais $(1, 2, 3, 4, \ldots)$? Infinitos, claro. E o dos números pares? Infinitos também. E qual tem mais? A primeira ideia é a de que os naturais são mais numerosos, porque eles não só contêm os pares mas têm outros caras juntos com eles, os ímpares. Mas pensando melhor, se os dois são infinitos, como falar que um infinito é maior que outro? Esse foi o problema de Cantor. E por ele mesmo a solução proposta foi:

“Dois conjuntos têm a mesma quantidade de elementos se há entre eles uma relação um para um entre seus elementos, ou seja, uma relação que corresponda cada elemento de um conjunto a outro sem repetir e sem faltar ou sobrar ninguém de nenhum dos conjuntos”

A ideia de Cantor é a ideia da quadrilha. Imagine-se olhando uma quadrilha de festa junina com MUITAS pessoas. Perguntam para você quantos homens tem, você responde “muitos”. Perguntam quantas mulheres, você responde “muitas”. Então perguntam qual conjunto, homens ou mulheres, tem mais elementos. Como você não consegue contar, avisa no microfone:

“Gente, formem pares os homens com as mulheres!”

Se não sobrar nenhum homem e nenhuma mulher, você pode dizer que os dois conjuntos tem a mesma quantidade de elementos. Pronto, você não precisou contá-los! Bastou formar uma relação um para um e verificar que não sobrou nem faltou ninguém. Com os números é a mesma coisa. Se eu gritar: “Formem duplas, cada número natural com seu dobro!”, as duplas vão se formar:

1  com  2

2  com  4

3  com  6

4  com  8

E assim por diante. Será uma relação um para um, nenhum natural ficará sem dupla e nenhum número par ficará sobrando. Assim: “Os naturais e os pares têm a mesma quantidade de elementos”.

Mas isso você já imaginava, já que os dois são infinitos. Galileu já tinha usado esse argumento para dizer que todos os infinitos são iguais. Mas Cantor percebeu que isso não era exatamente verdade. Você consegue provar que os naturais e os racionais (todas as frações) têm a mesma quantidade de elementos? Sim, consegue! Basta você perceber que: “Todo conjunto infinito que é possível enumerar tem a mesma quantidade de elementos que os naturais”. Claro, se você consegue colocar todos os elementos em uma fila e dizer quem é o primeiro e quem é o próximo, basta fazer o primeiro corresponder com o 1, o segundo com o 2 e assim por diante. Chamamos estes conjuntos de “Enumeráveis”. Os naturais, os inteiros e os racionais são enumeráveis.

Mas os reais não são. Por quê?

Primeiro vamos mostrar como podemos enumerar as frações. Claro que eu não vou pensar em quem é a “menor fração” ou “a fração mais perto de zero” para ser a primeira, porque eu nunca vou encontrar. Se eu eleger uma para ser a menor, sua metade será menor ainda, não adianta. Vou enumerar de um jeito diferente. Minha primeira fração da lista será $\frac{1}{1}$. As próximas serão aquelas cuja soma do numerador com o denominador dá 3: $\frac{2}{1}$ e $ \frac{1}{2}$. As próximas serão aquelas cuja soma dá 4: $\frac{3}{1}$, $\frac{2}{2}$ (dispensável, pois já coloquei $\frac{1}{1}$ na lista) e $frac{1}{3}$. As próximas: $ \frac{1}{4}$, $\frac{2}{3}$, $\frac{3}{2}$, $\frac{4}{1}$. Com isso eu consigo listar TODAS as frações sabendo dizer quem é a primeira e quem é a próxima da lista. Eu provei que o conjunto dos racionais é enumerável e, portanto, tem o mesmo número de elementos que os naturais.

E por que isso não funciona com os reais? Primeiro precisamos entender o que são os números reais. São todos aqueles números com qualquer coisa na sua parte decimal. Os números racionais são todas as frações, ou seja, todos os números com parte decimal periódica. A fração $\frac{1}{7}$ é, em decimal, 0,142857142857142857…, com o 142857 se repetindo. Os números irracionais são aqueles com parte decimal não periódica, como as raízes que não são exatas ou o número $\pi$. São números cuja expansão decimal é imprevisível, nunca se sabe qual o próximo algarismo deles. E isso deixa a enumeração deles impossível, vamos ver porquê.

Vamos tentar enumerar eles. Isso vai ser difícil, então vamos supor que nós já conseguimos! Vamos falar que enumeramos todos os números de 0 até 1. A nossa lista vai ser:

\[0,a_1 a_2 a_3 a_4 a_5 a_6 a_7 \ldots a_n \ldots\]

\[0,b_1 b_2 b_3 b_4 b_5 b_6 b_7 \ldots b_n \ldots \]

\[0,c_1 c_2 c_3 c_4 c_5 c_6 c_7 \ldots c_n \ldots \]

Em que os a’s, b’s e c’s são os algarismos dos números. Vamos fingir que isso seja uma lista com todos os números reais entre 0 e 1. Mas veja só. Imagine que eu pego um número que:

Seja diferente do primeiro na primeira casa.

Seja diferente do segundo na segunda casa.

Seja diferente do terceiro na terceira casa.

\[\ldots\]

Seja diferente do n-ésimo na n-ésima casa.

\[\ldots\]

Como eu posso escolher entre 10 algarismos diferentes, então eu posso criar um número que seja diferente do primeiro na primeira casa (tenha um algarismo diferente dele nessa casa), diferente do segundo na segunda e assim por diante. Esse número certamente é um número real entre 0 e 1, mas é diferente de TODOS os que estão na minha lista, pelo menos em uma casa (eu forcei isso). Então ele não está em minha lista, mas ele está entre 0 e 1 e eu disse que minha lista enumerava todos os números entre 0 e 1! Isso significa que: “Toda tentativa de enumeração dos reais deixará de fora um número real”, ou seja, os reais são não-enumeráveis! Então o conjunto dos reais não tem uma relação um a um com os naturais!

Provar que esse é um infinito maior é outra história, mas, se você está convencido de que há infinitos diferentes, não deve ser difícil se convencer de que os reais são mais numerosos, nesse sentido que definimos. Em uma quadrilha, não apenas os reais sobram se fazem pares com os naturais, infinitos reais dançam com vassouras nessa brincadeira.

Introdução

Geek Hardcore Rookie

Primeiro post, vamos ver no que isso vai dar.

Todo texto ou artigo começa com uma introdução, aquela parte que quase ninguém lê. Precisava ser justo e começar eu também nessa, explicando a que veio este blog.

Gosto de física e de matemática. Sou físico estatístico, terminando meu mestrado e caminhando para um doutorado, se os ventos permitirem. Muita coisa me fascina no que faço, sou desses apaixonados pela ciência, pelos resultados, pelo desafio e pelas pessoas que a fazem. Gosto de tanta coisa que esse blog ficaria injusto se focasse em um público, se fosse apenas divulgação ou apenas física avançada, então decidi criar três categorias e postar de acordo. A primeira, rookie, é para quem não viu mais ciência do que lhe foi martelado no colegial com musiquinhas e provas de raciocínio a lápis e resposta a caneta. A segunda, geek, é para os que se aventuraram a continuar, ou ainda estão neste treinamento, nas artes das exatas pelo ensino superior; penso em engenheiros, químicos ou estudantes de faculdade nessa categoria. A última, hardcore, é para os que concluíram o treinamento em física ou matemática, estão à vontade com epsilons e deltas, com bras e kets, com difeomorfismos e fibrados tangentes.

Não tenho tema específico, gosto de coisas bonitas na ciência. Sou físico estatístico, o que explica o título do blog; nessa área, estamos cansados de fazer o que chamamos de “soma sobre todas as configurações possíveis”, a base da definição de entropia e de algumas coisinhas mais. Claro, os posts podem acabar tendenciosos, mas não posso evitar, não posso escrever sobre super-cordas se não aprendi super-cordas, não me arrisco nas álgebras de Hopf se jamais me aventurei tanto na teoria das representações. Talvez mude de ideia, talvez Hopf me conquiste, não tenho compromissos com áreas ou gostos no que escrevo.

Vejamos no que estes textos vão dar. Meu único propósito é divertir quem lê, vocês, tentando compartilhar um trecho da beleza na ciência, que tanto é profanada nos impiedosos bloquinhos em plano inclinado de nosso ensino médio. Porque toda ciência começa como filosofia e termina como arte, sua beleza é difícil de deixar de perceber. Ela é, diferentemente de toda poesia, verdade, o que a reveste de um ar selvagem, belo e a ser desvendado. Mais bela que poemas, a ciência é a poesia da realidade, escrita no que somos e vemos, traduzida em matemática, um jogo de xadrez com o divino, em que temos como única missão entender as regras e jogar.