Nobel 2013 – O bóson de Higgs

Rookie

Hoje é um dia de festa para a física.

Há algumas horas, o CERN, Centro Europeu de Pesquisa Nuclear, anunciou a tão esperada descoberta: encontramos o bóson de Higgs. Depois de muito tempo, dinheiro e estudo, os físicos de partículas conseguiram, e hoje o dia é deles. Tenho lido bastante coisa na imprensa sobre essa descoberta, e infelizmente muita bobagem, em especial com o apelido “partícula de Deus”. De minha parte, acredito que vale a pena escrever um pequeno resumo sobre uma das aplicações do Higgs e sua importância para a física.

Para entender o Higgs, precisamos entender as forças da natureza. Todo tipo de interação acontece em uma de quatro formas possíveis: por força gravitacional, por força eletromagnética, por força forte ou por força fraca. As duas primeiras são bem conhecidas, é por elas que você é atraído pela Terra (gravitacional) mas não atravessa a Terra com seus pés (eletromagnética). As outras são menos famosas, mas igualmente importantes: a força forte é a atração que prótons e nêutrons sentem entre si, e o que torna o núcleo atômico possível; afinal, você nunca se perguntou como tanta carga positiva conseguia ficar junta? A fraca é mais sutil, ela age na desintegração de partículas e em uma boa parte do que conhecemos como radioatividade.

Essas quatro forças fundamentais possuem características muito diferentes. A forte é de alcance extremamente curto, mas muito intensa onde age, e sua forma exata ainda é desconhecida. A fraca age apenas em partículas “girando” em um determinado sentido, não em outro, como se preferisse a esquerda à direita, um comportamento muito estranho. A eletromagnética é talvez a mais bem comportada, conhecemos todas as suas leis e seu alcance, desde o século XIX ela não é mistério. A gravidade, no entanto, é a irmã bastarda das forças, resistindo a toda tentativa de unificação, sozinha, quase uma criança autista isolada em seu mundo e hostil a qualquer tentativa de se aproximar das outras. Pedi a um amigo que representasse as quatro forças em um desenho, que é um de meus favoritos:

No século XX, contudo, os físicos descobriram um passado comum entre a força fraca e a eletromagnética. Apesar de possuírem comportamentos completamente diferentes, descobrimos que, se estudamos partículas ou forças a altíssimas energias, essas duas forças são, na verdade, a mesma coisa nessa escala! Como irmãos gêmeos que depois de uma certa idade são completamente diferentes, essas forças já foram a mesma coisa, logo depois do Big Bang, quando a energia ainda era alta demais; mas hoje possuem apenas traços leves de parentesco.

Aí entra o Higgs. Essa partícula, que na verdade é mais um campo, é responsável pela quebra na simetria entre a força fraca e a eletromagnética. Em energias muito altas, elas são a mesma coisa, mas, conforme a energia vai baixando, o Higgs começa a agir e a tornar essas forças completamente diferentes.

Toda força é transmitida por uma partícula. As partículas da força fraca são os bósons W e Z, a partícula da eletromagnética é o fóton, e eles são radicalmente diferentes; para começar, W e Z têm massa, o fóton não. Isso é culpa do Higgs, por isso dizemos que ele é responsável por dar massa aos bósons, e até a mais outras coisas, porque podemos repetir esse raciocínio para explicar a existência de massa em todas as outras partículas! A presença do Higgs é a causa da separação entre a força eletromagnética e a fraca; sem ela, o universo seria um lugar bem diferente. Ele possui outras tarefas, mas talvez a mais importante seja essa, separar esses irmãos gêmeos e tornar um o bom aluno, enquanto o outro torna-se o rebelde.

A importância dessa descoberta é múltipla. Em primeiro lugar, temos nossa teoria confirmada, o que é fundamental para a ciência. Se isso fosse geografia, poderíamos dizer que há uma cidade ali, uma aqui, porque as observamos; e então dizermos: “Pelos meus estudos, deve haver uma cidade nas coordenadas 21º43’19”S, 44º59’06”W”, viajar e descobrir lá uma cidade, nunca antes observada, encontrando cidades e povos apenas porque sua geografia estava correta, porque a teoria está certa.

Em seguida, podemos aprofundar o estudo dessa partícula para desvendar outros mistérios, como o que é massa? Como a gravidade (que atrai massas) funciona? Por que a mesma massa que usamos para calcular a resistência a ser acelerado (aquela do $F = m.a$) é a mesma que serve para dizer o quanto um corpo atrai o outro? Como escrever a gravidade nessa linguagem de partículas? Pode o Higgs nos ajudar a entender toda aquela parte de matéria escura e energia escura que nos desafia e fascina, sem nos dar pista nenhuma?

Para mais detalhes, há um vídeo excepcional produzido pelo PhD Comics, de onde tirei a imagem inicial do post, que explica as dificuldades em medir o Higgs e que surpresas ainda nos aguardam.

Assim, parabenizo os físicos de partículas, em especial os experimentais, hoje o dia é de vocês. Uma vitória para os físicos, e para toda a ciência, que avançou mais um pouquinho na compreensão do universo, na busca pela verdade; uma pequena partícula para o CERN, um grande passo para a humanidade. E dou boas-vindas ao Higgs a nossa lista de partículas elementares, o tão esperado bóson que, depois de tanto fugir e se esquivar, cansou e voltou para casa.

Os limites da razão

Rookie

A natureza dificilmente gosta de ajudar o cientista. No ensino médio, aprendemos física em um mundo bem idealizado, sem atrito nas superfícies, sem resistência do ar e sem muito compromisso com a realidade. Todo professor de física ouve uma miríade de críticas a esse raciocínio, como se estivesse ensinando uma mentira, como se a realidade estivesse rindo da cara daqueles bloquinhos e polias, e muitas vezes está.

Não culpo o professor, este, se quisesse, poderia responder como Jack Nicholson a essa pergunta. Se um aluno reclama da incoerência do modelo com a realidade, que tente a realidade, vai voltar correndo a suas polias e bloquinhos. Porque a realidade é um monstro de complexidade e a física é feita de modelos: teorias que são tão boas quanto se propõem a ser. Ora, um cálculo de queda de objeto desprezando a resistência do ar funciona muito bem para quedas curtas, ou para objetos lançados na Lua, mas jamais se propôs a servir para lançar mísseis ou explicar o movimento de um paraquedista. Para esses fenômenos, você precisa de um modelo mais refinado, mais preciso; mas algo como um modelo exato não existe.

Como disse Weisskopf, modelos são como horários de trens na Áustria. Trens austríacos estão sempre atrasados. Um turista prussiano pergunta ao condutor austríaco por que eles se dão ao trabalho de imprimir essas tabelas, se os trens atrasam sempre. Ao que o condutor responde: “Se não as imprimíssemos, como saberíamos o quão atrasados eles estão?”.

E se você, com um ar levemente superior e arrogância não-desprezível, decidir criticar a ciência por “não saber nada exatamente”, eu pergunto: o que é saber algo exatamente? Eu posso descrever o movimento de minha cadeira, está parada, mas isso é apenas um modelo: há fótons bombardeando minha cadeira, interagindo com seus átomos, que por sua vez pulam, vibram, alguns até se soltam e voltam à cadeira, absorvem fótons, alguns até interagem com neutrinos de vez em quando, o wi-fi de minha casa atravessa a cadeira e interage com suas partículas, que também são bombardeadas pelas partículas de oxigênio e nitrogênio no ar. Essa cadeira, no nível atômico, é uma zona de guerra; descrever seu movimento, nesses termos, é um sonho tão distante quanto descrever o movimento de cada gota d’água em um tsunami. Se isso é saber algo, seriam necessários deuses para ensinar física ao ensino médio.

Nossos problemas não param por aí. Não somente realidade e modelos são coisas diferentes, muitas vezes nem nossos modelos ajudam. Ainda que tenhamos hipóteses bem otimistas, como a ausência da resistência do ar e do atrito, é terrivelmente fácil encontrar um sistema cuja solução é impossível aos mortais. E por impossível eu não digo “difícil” ou “eu não consigo porque sou moleque”, eu digo completamente impossível mesmo. Como exemplo, invoco o pêndulo duplo: uma bolinha presa por um fio em outra bolinha, presa por um fio em um ponto fixo. Algo com essa cara:

O problema desse sistema é: nem chorando você consegue prever o movimento dessas bolinhas. O sistema nada tem de aleatório, não há resistência do ar ou atrito, mas a relação entre as duas bolinhas, essa influência mútua causada pelo fio que as liga, torna o problema matematicamente tão complicado que ele toca as raias do impossível: não há homem sobre a terra capaz de escrever a coordenada $y$ de uma bolinha em função da $x$ para qualquer valor de tempo $t$.

O problema não é a física, você até conhece as equações desse problema. Lembra-se das leis de Newton?, pois bem, você consegue escrever o equivalente às leis de movimento das bolinhas. Essas leis, que são equações, se resolvidas, forneceriam a trajetória exata das bolinhas nesse modelo. O problema é: as equações não podem ser resolvidas exatamente, porque elas são equações muito difíceis.

Isso não nos impede, no entanto, de obter o movimento desse pêndulo estranho, basta explorar nosso amigo computador para isso. As equações são muito difíceis, impossíveis aos mortais no papel e caneta, mas o computador pode, na força bruta, calcular aos poucos cada instante dessa trajetória. Em cada momento, ele consegue estimar com bastante precisão onde o pêndulo estará no instante seguinte. Se esses instantes são bem próximos, a aproximação do computador é boa o suficiente para que o movimento seja descrito. Sentei essa tarde e escrevi um código para simular esse pêndulo, adaptando de outros que vi por aí, o resultado é algo perto disso:

E você também pode dizer que isso não é exato, essa nem é exatamente a resposta do modelo, e isso é verdade, em partes. Essas contas do computador são tão precisas quanto queremos que elas sejam, ora, basta você dizer o quão precisa você quer a conta que ele faz, vai apenas demorar mais ou menos tempo. Dessa maneira, esse pêndulo se movendo acima é preciso o suficiente para o que eu queria: um gif divertido que desse uma boa ideia do movimento do pêndulo.

O pêndulo duplo é um caso interessante por diversos motivos. Ele apresenta um fenômeno conhecido como caos, ou, na cultura popular, o efeito borboleta. Sistemas caóticos possuem definição matemática precisa e, como uma de suas características mais marcantes, possuem uma grande dependência de suas condições iniciais. No caso desse pêndulo duplo, dizemos que o lugar onde o pêndulo começa (no exemplo acima, a primeira bolinha forma um ângulo de 120º com a vertical, enquanto a segunda bolinha forma um ângulo de 10º com a vertical) influencia muito mais a trajetória do que você imagina.

Compare com um pêndulo simples, indo de um lado a outro. Sua trajetória são será tão diferente se você lançar o pêndulo de um ângulo de 10° ou se lançar de 9,9999°, você, aliás, terá problemas para dizer se são diferentes. No pêndulo duplo, a história é outra. Para me divertir, repeti a animação com dois pêndulos ao mesmo tempo, um azul, como o anterior (120° na primeira e 10° na segunda), e um vermelho, com as configurações levemente alteradas (120° na primeira e 9,9999º na segunda). Veja o que acontece depois de um tempo suficientemente grande:

O efeito borboleta é uma possível interpretação dessa propriedade de sistemas caóticos. 10° e 9,9999° são muito próximos, mas em dez segundos os pêndulos passam a ser completamente diferentes, é impossível dizer que eles já estiveram juntos. Analogamente, as equações da mecânica dos fluidos são também muito difíceis de resolver, e apresentam comportamento caótico. Nesse pequeno gif, você percebe a influência de uma variação de 0,0001° na posição inicial de uma das bolinhas. Para a meteorologia, podemos perguntar: pode o bater de asas de uma borboleta no Brasil causar um tornado no Texas?

A ciência não pretende apresentar modelos completos que descrevem a realidade em todas as camadas e fronteiras, isso não existe. Ela pretende, contudo, descrever o que pode, na precisão que consegue, melhorando sempre, compreendendo mais e criando modelos mais precisos, tendo como única juíza a realidade. A ciência busca chegar à verdade e, nessa jornada, nossos trens chegam atrasados, é verdade; mas garanto, não há outros disponíveis.

Pauli, o tirano

Rookie

As primeiras aulas de física quântica não são interessantes, são revoltantes. Se você não sente vontade de jogar o livro na parede, isso indica que não está entendendo a matéria. A razão é também o motivo de tanto usarem essa área da física para venderem esoterismo pseudocientífico, acrescentando a palavra quântica a qualquer termo para soar mais elaborado (tarô quântico parece bem mais interessante que tarô); a física quântica não possui, para vários conceitos, analogias no nosso mundo.

Enquanto conseguimos analogias para o campo elétrico no eletromagnetismo, tentamos explicar que é como o correr de um rio, tomando metáforas e alegorias dos fluidos para explicar as cargas, a física quântica não lida bem com analogias. E não é de se estranhar, ela é, em última análise, muito mais fundamental que a nossa física clássica, a física do dia-a-dia. Como ela descreve o muito, muito pequeno, não é obrigada a ter nada em comum com a realidade que conhecemos. Vou dar um exemplo.

Aprendemos a existência de uma propriedade das partículas chamada spin. O nome engana, os que descobriram essa propriedade achavam que ela representava o quanto a partícula estava girando, e isso não é verdade. É uma boa analogia, mas, se levada a sério, a energia do spin, se entendida como de rotação, obrigaria a partícula a girar mais rápido que a luz, um problema grave de tentar importar conceitos clássicos como “girar” a partículas. Por fim, um bom livro de quântica apenas dirá que as partícula possuem essa propriedade chamada spin, como possui outras que nos são familiares, como massa e carga. Mas não conseguimos perceber claramente a presença do spin em nosso mundo, foi uma propriedade descoberta apenas ao olhar para o muito pequeno. Assim, a pergunta: “o que exatamente é o spin?” não faz sentido. Ele é, ponto final, como a carga e a massa também são. Não se deve tentar explicar o muito pequeno pelo muito grande, é como tentar achar um análogo do tijolo entre os arranha-céus, o que você deve fazer é explicar o muito grande através do muito pequeno. A verdadeira pergunta é: “por que não vemos o spin no nosso dia-a-dia?”, e parte da resposta é dizer que, o spin podendo valer +1 ou -1, com muitas partículas juntas o +1 de umas compensa o -1 de outras e um corpo feito de muitos átomos acaba sendo “neutro” em spin. Outra parte da resposta está aqui, mas é um pouco mais complicada e não recomendo. E o que seria um corpo “carregado em spin”, com muito mais gente valendo +1 que -1? Chamamos esses corpos de imãs, e você provavelmente deve ter um em sua geladeira.

E o spin não é o único. Há um princípio fundamental e místico na quântica, cuja explicação honesta é bem complicada: o princípio de Pauli. De forma extremamente simplificada, esse princípio dos dirá que as partículas se dividem em dois grupos: os férmions (a maior parte dos que você conhece: o elétron, o quark, o neutrino) e os bósons (o fóton e outros menos conhecidos, como o glúon, eu sei, parecem todos nomes de pokemon). Enquanto os bósons vivem uma vida tranquila, os férmions devem obedecer ao princípio de Pauli, que diz que férmions iguais não podem jamais estar juntos no mesmo lugar. As noções de “juntos” e “mesmo lugar” são mais complicadas do que parecem, mas o princípio geral é esse: se dois férmions estão juntos, algo neles é diferente.

Esse princípio possui diversas implicações. Lembra-se daquela história de orbitais atômicos em suas aulas de química, ou do diagrama de Linus Pauling, ou das letras s, p, d, f? Esses conceitos todos são uma maneira diferente de escrever o princípio de Pauli. Os elétrons estão em torno do núcleo atômico, eles são férmions. Naturalmente, eles vão estar no menor estado de energia possível; se eles estiverem com uma energia alta, vão provavelmente enviar essa energia em forma de fóton e descer para um estado mais baixo de energia. Se fica difícil imaginar, tente visualizar essa energia como a “velocidade” dos elétrons. Se rápidos demais, eles podem enviar essa energia sobrando em forma de fóton e ficar mais devagar, sendo difícil acelerar de novo. Se um elétron tem mais energia que outro, dizemos que ele está em outra camada eletrônica. Aqueles desenhos de anéis concêntricos das camadas do átomo não são verdadeiros, a camada tem muito mais a ver com a velocidade do elétron que com a posição, e o lugar do átomo onde os elétrons ficam está bem diferente de círculos concêntricos, em alguns casos é mais perto de uma chupeta que de uma esfera.

No caso do estado de menor energia, teremos um problema. Um elétron consegue entrar lá, mas o próximo não, porque ele precisa ser diferente em algo, pelo princípio de Pauli. Então o primeiro entra com spin valendo +1, um segundo pode entrar valendo -1, e a entrada para elétrons é fechada depois disso. O estado de menor energia, o tal do orbital s, não pode abrigar mais que 2 elétrons, porque o princípio de Pauli impede. Se mais elétrons querem entrar no átomo, eles devem ter uma energia superior ao do estado 1s, devem ocupar um espaço em uma camada mais energética, que é onde está livre. Esse princípio, que antes parecia uma proibição arcana, rege a estrutura eletrônica dos átomos. Temos uma representação simples dessa lei nesse desenho tirado de xkcd.com:

E não somente lá. No interior de uma estrela grande, os elétrons são forçados a ficarem muito juntos e, pelo princípio de Pauli, devem diferir em alguma coisa. Sem opção, eles devem diferir em energia, isso força os elétrons do interior da estrela a terem muito mais energia do que eles “precisariam” se não fosse o princípio de Pauli; essa diferença de energia é responsável pela estabilidade da estrela durante milhares de anos; se não fosse o princípio de Pauli, os elétrons poderiam se encostar em um nível de energia baixa e o interior da estrela não conseguiria resistir à pressão gravitacional (é um pouco importante ler o post sobre evolução estelar para entender o que digo). Um fenômeno quântico, do mundo do muito pequeno, assegura que a estrela não colapse; Pauli exige que os elétrons sejam diferentes, e eles se tornam diferentes em alguma coisa, sem opção, devem aumentar sua velocidade para diferirem em energia.

O princípio de Pauli se aplica a todos os férmions. Curiosamente (putz, é um teorema bem difícil de provar, conhecido teorema da estatística do spin), todos os férmions possuem spin semi inteiro (1/2, 3/2, 5/2) e os bósons possuem spin inteiro (0, 1, 2), o que conecta esses dois conceitos de modo nada trivial e torna a teoria quântica de campos mais divertida.

Apesar de parecer místico, uma proibição de juntar partículas iguais, o princípio de Pauli nada tem de misterioso e possui formulação matemática precisa e elaborada. A quântica sofre daquele mal, ao enunciar uma lei, tê-la rapidamente roubada por charlatães esotéricos que a convertem em frases genéricas e sem sentido como “estamos todos conectados no mundo quântico” ou “cada partícula é única, cada indivíduo é único”. Ao encontrar um desses, não combata, fuja. Não tente explicar, corra. Eles não parecem querer a verdade, gostam mais de adequar a ciência a suas preconcepções; e dizer a verdade a quem não a ama é apenas dar mais munição para ser mal interpretado. Não estou em uma cruzada contra misticismo ou esoterismo, isso é assunto para outro post, como aquele sobre os comentário de Ayres Britto, mas talvez ainda outro blog; deixo apenas um aviso, como físico, que esse uso da quântica como fonte de frases-feitas pseudocientíficas me revolta. A quântica é a teoria mais testada da física, e a que passou nos testes com maior precisão, a mais “certa” das áreas, e talvez a mais estranha por suas leis e ditos sem análogo clássico. Como elétrons que giram sem girar, como gatos que estão mortos e vivos, como Pauli, ditando que partículas iguais, por mais que se amem, não podem ficar juntas.

Epidemias, parte II

Hardcore

Em um post anterior, comentei sobre a evolução de epidemias em seres humanos e sobre a noção de threshold, um valor mínimo de eficácia da doença para que ela tenha algum futuro. Hoje vamos falar de vírus de internet e sobre como sua propagação ocorre de maneira diferente, porque sites e seres humanos não são a mesma coisa. Se o post anterior já era hardcore, esse não deixa barato, em alguns sentidos é mais intrincado que o primeiro, mas sua conclusão é bonita. Coragem, respire e me acompanhe.

O sistema descrito no post anterior não é um bom modelo para a internet. Os sites possuem um fenômeno conhecido como preferential attachment, ou, como no Brasil chamamos, o rico cada vez fica mais rico e o pobre, mais pobre. Um novo usuário tende a acessar sites que são mais famosos quando entra no sistema. Claro que há diversos fatores, desde idade do site à sua capacidade de inovação, mas em um modelo simples podemos imaginar que um usuário que deseja criar uma rede social tem uma tendência maior a abrir uma conta no Facebook a uma no Uolkut (que acabo de ficar sabendo que foi desligado esse mês, paciência, segue como exemplo).

Podemos representar isso em um grafo como no post anterior. Um modelo simples de preferential attachment é conhecido como Barabási-Albert, consiste em começar com um número de pontos (digamos 2) e, a cada ponto inserido no grafo, esse ponto fará um número de conexões (digamos também 2) com os pontos já existentes. Isso representa um número de sites que possuem links entre si e um novo entrando na roda, formando links com os já existentes. Mas em um momento haverá mais pontos disponíveis que links a serem feitos pelos novos ingressantes, então um novo membro deve escolher os pontos com que quer formar links, e essa escolha se dará de forma aleatória, sendo a probabilidade de se conectar a um ponto proporcional ao número de links que o ponto já possui. Vamos supor um caso inicial de dois pontos, sem vínculos. O primeiro que entra deve fazer duas conexões, então ele escolhe os dois já existentes. O próximo a entrar terá que escolher dois dentre aqueles três: um possui duas conexões e outros dois possuem apenas uma, então a primeira conexão entra com probabilidade 1/2 no link com mais conexões e 1/4 nos outros. E a segunda será análoga, dependendo da que ele já escolheu (não pode formar duas conexões com o mesmo ponto). Represento um dos resultados possíveis desse modelo com um belo gif, tirado sem escrúpulos da Wikipédia.

Tentando repetir o raciocínio do primeiro post sobre epidemias, temos um problema na equação mestra, aquela que nos diz a evolução temporal da probabilidade. Não mais sabemos o número médio de contatos de cara ponto, não possuímos mais a relação $\langle r \rangle=2m$. Estamos vamos fazer por partes: escrevamos a equação mestra supondo que o ponto tem um número $k$ de contatos e depois eu faço uma soma ponderada disso tudo.

A chance de um ponto com que fazemos contato estar infectado depende de $\lambda$, vamos então o denotar $\Theta(\lambda)$. Nossa equação mestra, supondo um $k$ específico, nos dará a densidade de infectados supondo esse $k$ específico, ou seja, $\rho_k$. Ela será:

\[\partial_t\rho_k(t)=-\underbrace{\rho_k(t)}_{\text{cura}}+\lambda \underbrace{k(1-\rho_k(t))\Theta(\lambda)}_{\text{contato sadio-doente}}\]

Os que se interessam nos meandros das contas, escrevo a expressão de $\Theta$, que representa a chance de, estando em contato, está-lo com um infectado. Ela deixa de ser evidente, mas pode ser calculada da forma:

\[ \Theta(\lambda)=\sum_k\rho_k\overbrace{\frac{kP(k)}{\sum_ssP(s)}}^{\text{probabilidade de ter k}}\]

E depois, para achar a densidade total de infectados, basta somar de forma ponderada com $k$:

\[\rho(t)=\sum_k P(k)\rho_k(t)\]

É aqui que paro com a tortura das equações. Misturamos essas acima e chegamos a uma conclusão um pouco perturbadora sobre a densidade de persistência, aquela obtida igualando a sua derivada temporal a zero:

\[\rho\propto e^{-\frac{1}{m\lambda}}\]

Não encontramos nenhuma maneira de obter o que antes chamávamos de threshold, os vírus de internet não possuem uma eficácia mínima para funcionarem , eles se propagam e adquirem uma população constantemente infectada a qualquer taxa de infecção. Mando aqui o gráfico da densidade de persistência:

Ainda que temamos essa propagação sem threshold, podemos ficar tranquilos, o decaimento da densidade de persistência é exponencial para pequenas taxas de infecção e ela se torna rapidamente desprezível, como percebemos no gráfico. Ainda, esse modelo é capaz de explicar a propagação desenfreada de ameaças tidas como bem estúpidas, links evidentemente falsos e infecções cuja eficácia seria baixa ($\lambda$ baixo), não fosse o grande número de conexões dos infectados. Terminando esse exemplo, elogio a graça e simplicidade desse toy-model, capaz de explicar doenças, epidemias e talvez até aquele seu tio (ou tia) chato, aquele que na sua adolescência perguntava de suas namoradinhas, e agora manda tantos supostos vídeos exclusivos de celebridades nuas; todos conhecemos um desses, tendo, como teorema, que todos têm um tio chato. Se você não tem, cuidado, ele provavelmente é seu pai.

As pontes de Konigsberg

Rookie

Quando eu era garoto, conheci um problema de lógica e desenho que deve ser famoso. Apresentaram-me a seguinte figura:

Sendo o objetivo do problema desenhar essa figura sem tirar o lápis do papel e sem repetir os caminhos. Após algumas tentativas, cheguei a um caminho correto, desenhava feliz a casa com o X segundo as regras. Foi então que me foi apresentado uma variante do problema, “mais difícil” segundo aquele que me passou. Fui desafiado a desenhar essa outra figura:

Passei anos tentando, vez ou outra, resolver esse problema. Deixei de dar atenção a ele depois dos treze anos e, aos dezoito, descobri que todas aquelas tentativas fúteis de desenhar essa estranha flor foram justificadas: o problema não tem solução, é impossível encontrar um caminho que desenhe essa figura sem tirar o lápis do papel e sem repetir caminhos.

Mal sabia eu que esse mesmo problema, ou quase, havia sido resolvido por Leonhard Euler na cidade de Konigsberg, Prússia, em 1735. Euler garante com tranquilidade um lugar no top 3 da matemática, ostentando ainda hoje o título de matemático com maior número de publicações, tendo passado os dez últimos anos de sua vida cego (e publicando matemática, claro) e, segundo dizem, foi um excelente pai de seus cinco filhos. Ao passar pela cidade de Konigsberg na Prússia, Euler foi desafiado com um problema típico da cidade. Ela possuía duas ilhas no rio ligadas entre si e com a terra por sete pontes, como mostra a figura descaradamente roubada da Wikipédia:

E o desafio era atravessar as sete pontes sem repetir nenhuma. Você pode se divertir tentando, como os habitantes da cidade faziam, mas Euler decidiu pensar no problema de maneira mais profunda. A primeira coisa que fez foi se livrar do que estava sobrando: prédios, ilhas, estradas, apenas as pontes importavam:

Numerei as massas de terra para que a identificação com o desenho seguinte fique mais clara. Não contente, Euler percebeu que podia simplificar ainda mais o diagrama escrevendo-o da seguinte forma:

A vantagem desse formato, minimalista ao extremo, é nos permitir focarmos apenas no que realmente importa. E esse foi o raciocínio de Euler: quero atravessar todas essas linhas sem jamais repetir nenhuma. Rapidamente, ele notou que, para não repetir linhas, todo ponto a que ele chegasse deveria permitir uma saída, exceto, claro, pelos pontos inicial e final. Ou seja, para todo o ponto, exceto os de começo e fim, cada entrada deve possuir uma saída correspondente: ele deve possuir um número par de conexões. Se ele possui um número ímpar, digamos, 3; eu entrarei nele, sairei dele e, na próxima entrada, não terei como sair, eu travei e, ao menos que ele seja meu ponto final, perdi o jogo.

Olhe agora o diagrama das pontes de Konigsberg. Todos os pontos possuem um número ímpar de linhas, quando o número máximo é dois (entrada e saída). Assim, Euler concluiu de uma vez por todas que não é possível atravessar as sete pontes de Konigsberg sem jamais repetir nenhuma.

E Euler também responde a meu problema da flor estranha. Enquanto a casa com o X possui todos os vértices com um número par de linhas exceto pelos dois na “base” da casa, eu consigo criar o caminho e desenhá-la sem repetir linhas. E mais: sei sempre que os pontos de começo e fim serão os da base, é impossível fazer o caminho sem começar por eles, são os únicos com um número ímpar de conexões. Quanto à flor, todos os vértices do quadrado central possuem cinco conexões, qualquer caminho leva ao fracasso e meu problema está resolvido.

Curiosamente, quando trabalhava na usina nuclear, um colega propôs-me esse problema da flor, alegando que seria interessante já que eu “gostava dessas coisas” e que ele não conseguia resolver. Vingando-me daquele que em minha infância apresentou-me o problema, disse triunfante ser impossível e, naquela mesma lousa, contei as linhas de cada vértice. Porque matemáticos não levam muito bem a ideia de “não conseguirem algo” e, não conseguindo, ao menos provam que ninguém no mundo consegue.