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Nobel 2014 – LED azul

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LED azul?

Essa foi minha reação ao prêmio nobel da física de 2014. Eu preciso admitir que fiquei surpreso, mas não sei o que esperava. Não consigo listar de cabeça nada que mereça o prêmio no lugar, ainda que seja um forte advogado de uma dessas medalhas a Freeman Dyson, mas não esperava um prêmio a algo tão… não sei a palavra. Tão engenharia? É, não esperava o prêmio para algo tão IEEE e tão pouco Physical Review.

E qual é o problema do LED azul? Para entender o mérito do prêmio, precisamos conversar sobre o predecessor do LED, a lâmpada incandescente, e sobre o que é uma cor.

Eu comentei nesse post que enxergamos objetos com cores diferentes porque eles absorvem determinadas frequências e refletem outras. Cores são isso: luz de frequências diferentes. Luz branca consiste em um feixe de diversas ondas eletromagnéticas em várias frequências diferentes, nosso olho interpreta isso como branco. Podemos separar esses feixes com um prisma, pois elas refratam com ângulos diferentes entrando em um meio, é isso que o álbum do Pink Floyd mostra. Mas essa conversa é para objetos que refletem luz branca, o que acontece com os objetos que emitem, eles mesmos, luz? Como essa luz é gerada e como é definida sua cor?

Existem dois jeitos de se produzir luz, que na verdade são o mesmo jeito. Toda luz emitida consiste em um elétron que perde energia e lança essa energia em forma de luz. O primeiro jeito é você ter vários elétrons bem rápidos se batendo. Esse bate-bate causa aceleração, e partículas carregadas, quando aceleradas, emitem luz. A frequência dessa luz, e com isso a cor, depende da violência da pancada, que por sua vez depende de quão rápido o elétron estava indo. Quanto mais rápido os elétrons estão vibrando e se batendo, mais próximo do ultravioleta a radiação emitida estará, enquanto elétrons mais tranquilos emitem radiação no infravermelho. É claro que as pancadas acontecem em diversas velocidades, e o corpo como um todo emite várias frequências, mas como as partículas vibram em uma velocidade média, existe uma “pancada média” e isso faz o corpo emitir luz preferencialmente em uma faixa de frequência, a “cor favorita” do corpo. A intensidade do bate-bate é determinada pela temperatura, e isso acontece em toda temperatura com todos os corpos, inclusive o seu. A temperatura do corpo humano é suficiente apenas para emitir radiação localizada bem fundo no infravermelho, invisível aos seres humanos. Ou seja, você brilha, mas é um brilho especial que nem todo mundo vê.

Se você fosse capaz de enxergar frequências nessa faixa, poderia ver no escuro. Um ser humano seria, portanto, algo assim para você.

Mas nossos olhos sobreviveram a travessia evolutiva para enxergar apenas uma faixa restrita do espectro eletromagnético, por isso não enxergamos nossos amiguinhos desse jeito. A escolha da faixa é explicada por dois motivos: é a frequência favorita de emissão do sol e é uma das pouquíssimas faixas de frequência que não é absorvida pela água. Esse material safado, o H$_2$O, absorve quase todas as faixas de frequência, quase todas as “cores” que existem, exceto as que vemos. Na verdade, a relação de causalidade é invertida; não é coincidência que a água é transparente, nossos olhos foram criados para detectar e interpretar apenas as faixas de frequência que conseguem atravessar a água, porque todas as outras, vindas do sol, são na maior parte absorvidas pela atmosfera. Se pudéssemos apenas enxergar outras faixas do espectro eletromagnético, essas que a água absorve, nossos dias seriam muito mais escuros.

A lâmpada incandescente funciona exatamente assim. Esquentamos o tungstênio, aquele filamento metálico que quando arrebenta dizemos que a lâmpada queimou, e, quando ele atinge a casa dos 3.000 graus, ele brilha. É claro que essa lâmpada emite várias frequências, os elétrons estão se batendo em várias velocidades, mas conseguimos perceber que há uma preferência pelo amarelo por ali.

O segundo jeito de emitir luz é brincar com elétrons em estruturas mais complicadas, sólidos semicondutores ou isolantes. Nesses sistemas, os elétrons não têm muito espaço de manobra, há lugares e energias bem fixos para abrigá-los; elétrons têm lugar marcado em um semicondutor. Somos capazes de embebedar um sólido desses com mais elétrons do que ele gostaria, e somos capazes de arrancar elétrons de um outro sólido. Quando juntamos esses dois, os elétrons de um pulam para o outro, e nesse pulo eles emitem luz. A vantagem desse método é que a cor emitida depende apenas do tamanho do pulo, e é sempre a mesma, porque os elétrons possuem lugar e energia marcados em ambos os sólidos, o que força os saltos de energia entre um sólido e outro a serem sempre os mesmos. Isso é, grosso modo, o princípio do LED.

A cor emitida depende apenas da diferença de energia entre as posições marcadas dos semicondutores, então basta encontrar materiais que, nesse processo, possuem uma diferença de energia cujo salto emita uma radiação no espectro visível. E isso é relativamente fácil para frequências de menor energia, o vermelho e o verde, por exemplo. Chegando perto do azul, no entanto, não é fácil. A diferença de energia entre as bandas (os lugares marcados dos elétrons) dos sólidos deve ser muito alta para gerar o azul, muitos acharam que era impossível. E pior que isso, você precisa do azul para, com o vermelho e o verde, formar luz branca.

Em uma analogia, o LED funciona como uma cachoeira de elétrons. A queda dos elétrons emite luz, e essa luz é proporcional à altura da cachoeira. Para emitir luz azul, precisamos de uma cachoeira muito, mas muito alta, os elétrons precisam acelerar muito para atingir essa frequência. Após quase duas décadas, um grupo de físicos japoneses conseguiu conceber o ajuste certo em nitretos de gálio (lembra desse elemento? pois é, não confunda com gadolíneo) para criar a cachoeiras perfeita, e até outras mais altas. Não apenas isso, o processo podia ser reproduzido em escala industrial, e isso abriu o caminho para a iluminação do século XXI e preparou a aposentadoria da lâmpada de tungstênio.

É fácil ver a razão do LED ser mais econômico. A lâmpada de filamento emite radiação em várias frequências, inclusive várias invisíveis, e a maior parte da energia (95%) que usamos na lâmpada é convertida em calor para o espaço em volta dela, não em radiação. O LED é apenas a luz, apenas uma frequência específica, a cor que queremos, não há desperdício esquentando a ampola para matar os insetos que, como Ícaro, voam perto demais do sol.

Revolucionária, sem dúvida. Interessante, certamente. Econômica, ecologicamente viável, essa descoberta tem tudo para ser eleita uma das tecnologias mais importantes dos anos 80-90. Mas Nobel da física…? Não quero parecer invejoso ou reclamão, o pessoal da matéria condensada merece o prêmio e não vou alimentar as rixas entre as áreas da física, mas convenhamos. Nos anos anteriores tivemos a descoberta de uma nova partícula, uma exploração detalhada do misterioso intricamento quântico, a  descoberta da expansão cósmica e a criação de um material de natureza nunca antes vista, o grafeno. Sinto uma diferença entre os prêmios atribuídos a essas quatro descobertas e ao LED azul, elas parecem mais fundamentais, mais interessantes, mais… físicas? Não sei explicar, admito que sou reclamão; perto dos blocos fundamentais da natureza, do intricamento entre luz e matéria, da expansão do cosmos e da criação de um novo estado da matéria, o LED azul me parece só uma cachoeira mais alta.

Dos delitos, das penas e dos almoços.

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O resultado de uma decisão judicial depende apenas das leis e dos fatos? Com essa pergunta, os matemáticos Shai Danziger, Jonathan Levav e Liora Avnaim-Pesso causaram tumulto em um artigo publicado em Proceedings of the National Academy of Science, um periódico científico americano extremamente bem respeitado, e gostaria de compartilhar esse artigo hoje com vocês.

No artigo, os autores compilaram 1.000 decisões judiciais de liberdade condicional, em que o resultado poderia ser apenas sim (liberdade concedida) ou não (volta para a cela), para explorar um lado pouco comentado do sistema judiciário, pouco mencionado em cursos de direito. Com estatística, poderíamos ver pela primeira vez a influência marcante do café da manhã na definição do futuro de um integrante do sistema carcerário.

O sistema de decisão judicial funcionava da seguinte forma: os prisioneiros eram julgados dependendo da ordem de chegada dos advogados ao tribunal, não tendo poder sobre o horário em que teriam seu caso analisado. Os autores do artigo decidiram compilar a seguinte estatística: como o número de decisões favoráveis varia em relação à hora do dia? Sendo Sim = 1 e Não = 0, podemos fazer a média das decisões e estudar como essa média varia da primeira decisão do dia à segunda, da segunda à terceira e assim por diante. O resultado é o seguinte gráfico:

F1.largeNo eixo X temos a ordem das decisões, sendo x=1 a primeira decisão do dia, x=2 a segunda e assim por diante; cada tick marca uma decisão múltipla de 3. As linhas pontilhadas são pausa para almoço e pausa para café. O gráfico fala por si.

Alarmados com esse resultado, os cientistas estudaram outras variáveis em função da posição da decisão no dia. Porque correlação não implica causalidade, esse comportamento pode ser causado por uma terceira variável que liga as decisões e o horário. Eles então estudaram a gravidade da ofensa, número de encarceramentos prévios, porcentagem de presos que estavam em um programa de reabilitação quando postularam a liberdade condicional e o número de meses cumpridos da pena. Os resultados são:

F3.largeÉ fácil ver que o padrão do primeiro gráfico não chega perto de se repetir em nenhum outro. As outras variáveis não apresentam correlação clara com almoço ou café, não nos resta outra alternativa. Os autores do artigo são hesitantes, dizem que gostariam de achar uma variável escondida, mas a conclusão parece clara: uma decisão judicial depende de leis, fatos e do que o juiz comeu no café da manhã.

Os autores explicitam que não sabem se é a comida ou o repouso. Talvez estar descansado mentalmente torne os juízes mais brandos, e talvez depois de ler tantos históricos com crimes horrendos eles vão endurecendo nas decisões e a pausa lhes restabelece a obrigação da imparcialidade. Independente da sua explicação favorita, o estudo acende debates e reflexões interessantes sobre nossa maneira de fazer avaliações.

Podemos perguntar da taxa de sucesso de entrevistas de emprego em função da ordem de apresentação dos candidatos, podemos perguntar a relação entre nota de um aluno em prova oral e sua ordem de passagem pela lousa. Independente da pergunta, se podemos tirar uma lição do artigo, percebemos que pessoas alimentadas são mais felizes, que você quer seu caso julgado por um juiz repousado, e que levar uma maçã para a professora, no final das contas, é uma excelente ideia.

Artur Ávila, o domador do caos

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A cada quatro anos, no congresso internacional de matemática, são anunciados os ganhadores do que é considerado o maior prêmio da matemática, a medalha Fields. É um prêmio especial, entregue só a matemáticos de menos de quarenta anos, extremamente prestigioso e justo. Esse ano houve algo diferente, pois um dos ganhadores, Artur Ávila, é brasileiro.

Somos perto de duzentos milhões de habitantes, não temos um prêmio nobel de ciência. As razões são muitas e não cabem aqui, nem as conheço todas e o debate é bom e interessante, mas fica para outro dia. No caso da física, eu asseguro; se algum brasileiro ganhar um nobel no curto prazo, pouco ou nada de sua pesquisa terá sido no Brasil. São comuns casos de cientistas cuja formação é toda feita em outro país e, ao receber um prêmio, seu país natal comemora como final de Copa do Mundo. Não sou contra, é uma pequena hipocrisia que pode gerar um interesse na área e pode estimular talentos mais jovens, mas não é realidade. Com Artur Ávila, no entanto, não é o caso; Ávila é brasileiro com formação brasileira que trabalha no Brasil. Isso diz muito sobre a matemática no Brasil, sobre o IMPA (instituto em que o Ávila trabalha) e merece todo o elogio e admiração que esse pobre blog pode emitir.

Mas você não veio aqui para ler sobre o Ávila, isso você vai encontrar na Folha, no G1 ou um portal de notícias. Vou tentar explicar um pouco a base da pesquisa do Ávila, que é a teoria de sistemas dinâmicos. Não se anime, ainda com esse post você não vai conseguir ler um artigo do Ávila, eu mesmo os leio como alguém que acabou de fazer seu primeiro semestre de curso de inglês lê Shakespeare, devagar, sofrido e consultando o dicionário a cada linha.

Não que seu texto seja arcano ou confuso, pelo contrário, matemática boa é reconhecida pela clareza e precisão. O problema é falta de base e de hábito. Matemática é uma área do conhecimento extremamente vertical, temos que passar pelo térreo, primeiro, segundo e todos os andares seguintes para chegarmos ao topo. O que vou apresentar aqui é o térreo dos sistemas dinâmicos, e talvez uma parte da área de serviço.

Um sistema dinâmico é uma regra que associa estados passados a estados futuros. Lembra-se daqueles desafios lógicos em que você tem uma sequência de números e tem que descobrir a regra que os gera, para descobrir o próximo? Algo como 1, 1, 2, 3, 5 e você deve adivinhar que o próximo é 8. Neste caso, temos a regra $x_{n+1} = x_{n}+x_{n-1}$, chamada regra de Fibonacci. Uma regra associando estados passados (o $x_{n}$ e o $x_{n-1}$, que são o estado anterior e o antes do anterior) a estados futuros ($x_{n+1}$), pois podemos continuar para obter todos os seguintes. Claro que não estamos restritos a isso, podemos definir muitas regras e até estabelecer regras em espaços que não são discretos e bonitinhos como o do exemplo.

Com isso, dá para perceber que muita coisa é um sistema dinâmico. A grande exigência é que a regra deve ser determinística, ou seja, começando em um ponto o sistema deve caminhar em uma direção específica. Se voltar ao ponto de partida, o sistema deve percorrer percorrer o mesmo caminho, ou efetuar uma órbita, como gostamos de chamar.

Ávila se aprofundou em fenômenos que envolvem fractalidade, caos e outras coisas um pouco mais complicadas. Um exemplo interessante dos dois primeiros em sistemas dinâmicos é a equação logística, algo de definição bem simples e resultados complicados. Assim como nós antes tínhamos uma sequência definida com a regra de Fibonacci, vamos pensar em outra regra: $x_{n+1} = r.x_n(1-x_n)$, onde $r$ é um número entre 1 e 4. Parece simples, e nem parece muito diferente da outra, mas dependendo do valor de $r$ você vai descobrir que essa a sequência gerada sai do controle rapidamente.

Vejamos o que acontece quando começamos no valor $x_0=0,\! 1$ e com $r=1,\! 2$. Primeiro calculamos o próximo passo: $x_1 = r.x_0(1-x_0)$ $=1,\! 2.0,\! 1(1-0,\! 1) = 0,\! 108$. Para calcular o próximo passo, continuamos com a regra: $x_2=r.x_1(1-x_1)$ $=1,\! 2.0,\! 108(1-0,\! 108)= 0,\! 1156032$. Não vou escrever linha por linha, mas um gráfico revela o futuro dessa conta, ela converge para um valor específico.

avila_1Com esse gráfico você pode achar que esse sistema é tranquilo, que outros valores vão também convergir, que tudo caminha para um valor bonito e estável. Nada podia estar mais longe da verdade. Veja o que acontece quando trocamos $r$ por $3,\! 1$.

avila_2Com esse valor de $r$, o sistema não converge para um valor, mas para dois valores. Esse comportamento não é lá muito normal, mas piora, veja o que acontece quando colocamos $r=3,\! 5$.

avila_3Nesse caso, o sistema converge para quatro valores. Conforme aumentamos o valor de $r$, o sistema fica cada vez mais instável e converge para cada vez mais valores diferentes. Chega um ponto que podemos nos perguntar: converge mesmo? Não seriam tantos valores que a própria noção de convergência já perde o sentido?

Esse sistema dinâmico converge para um valor apenas quando $r$ está entre 1 e 3. Para um $r$ entre 3 e 3,45, ele converge para dois. Quando $r$ está entre 3,45 e 3,544, o valor de $x_n$ pipoca entre quatro possibilidades e entre 3.54 e 3.56 teremos oito possibilidades. Não apenas esses valores aumentam exponencialmente, o intervalo de $r$ em que eles acontecem fica cada vez menor. Refletido a respeito, o primeiro intervalo é quase cinco vezes maior que o segundo, enquanto o segundo também é quase cinco vezes maior que o terceiro. Essa relação entre os intervalos, se fizermos uma sequência com ela, converge para um valor, chamado constante de Feigenbaum. Quando chegamos a $r=3,7$, na verdade bem antes disso, torna-se completamente impossível prever os valores desses sistema. O único jeito de obter o valor na centésima iteração é calcular todas as noventa e nove anteriores. Veja como fica nosso gráfico para $r=3,7$.

avila_4E talvez nisso surja uma das perguntas mais interessantes de caos, fractalidade e sistemas dinâmicos: como pode uma regra tão simples gerar um resultado tão complicado e imprevisível? Como pode tanta complexidade emergir de uma única lei? O caráter matemático dessas perguntas é profundo, e as implicações são maiores do que imaginamos olhando pela primeira vez.

Escolhi esse exemplo porque ele é muito próximo do trabalho de alguns físicos, complexidade é algo onipresente na natureza e na realidade. Não gosto de partir para o esoterismo, mas não são poucos os cientistas que estudam sistemas caóticos, como a equação logística, para tentar responder questões sobre livre-arbítrio e consciência. O argumento de “se somos apenas átomos, está tudo definido e não temos escolha” não precisa nem da mecânica quântica para ser extinto, a equação logística cuida dele. Fenômenos simples podem gerar complexidade o suficiente para que a previsibilidade seja destruída; determinístico não é determinado e, como vemos acima, para todos os efeitos de medida, se a equação logística fosse uma pessoa ela pareceria ter bastante livre arbítrio sobre o próximo valor da sequência.

Ávila fez contribuições fundamentais para o estudo de sistemas dinâmicos reais e complexos, uni e multidimensionais, discretos e contínuos. Nos sistemas dinâmicos unidimensionais, Ávila praticamente “terminou” o assunto, após seu último artigo no tema poderiam passar os créditos e baixar a cortina. Estudando profundamente o caráter matemático de objetos pontudos como a equação logística, Ávila nos aproximou um pouco mais do que há por detrás da cortina da complexidade. Domando o caos, Ávila mereceu e ganhou o mais alto prêmio que um cientista brasileiro já conquistou. Que abra caminho para os próximos, que seja o primeiro de muitos, que, como na equação logística, o intervalo entre a primeira dessas e a próxima seja bem menor que o tempo que a primeira demorou para chegar.

A valsa dos partidos, de Collor a Dilma

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Nesse primeiro de abril lembramos os cinquenta anos do golpe. Vi uma série de reportagens e matérias sobre o evento, sobre as causas e as supostas causas, mas pouco vi sobre onde chegamos desde então. Não sou historiador, não tenho calibre para escrever nada a respeito da história política, mas gosto de estatística e de analisar dados coloridos. Por isso, gostaria de compartilhar com vocês o resultado da aplicação de algumas técnicas estatísticas interessantes no estudo e análise do que tem sido a política brasileira desde o fim desse período sombrio de nossa história até os dias de hoje. Queria compartilhar a estatística da câmara dos deputados, os movimentos, fluxos e tendências, desde o governo Collor até a presidência de Dilma. Esse post é imenso, e extremamente incompleto. Preciso da ajuda de vocês para entender a maioria do que observei. Se você achou o post longo, basta ler o começo para entender como os gráficos funcionam e se divertir nos vídeos.

Como expliquei nos posts anteriores sobre o assunto, esse não é um blog de política e esse não é um post político. Comentários culpando os petralhas ou a privataria tucana não são tão bem-vindos quanto análises refletidas sobre os dados que vou apresentar. E tento manter meus comentários sempre no lado da estatística da coisa, não insiro nenhuma informação sobre a ideologia dos partidos nos dados e não faço juízo de valores das decisões dos governos de cada partido.

Antes de apresentar os dados, preciso explicar o que são esses dados. Como nos posts anteriores, eu uso como dados apenas os votos proferidos pelos deputados da câmara nos projetos de leis envolvidos naquele ano. Cada gráfico representa os deputados daquele mandato como pontos coloridos, sendo a cor referente ao partido. Pontos próximos significam deputados que votaram de forma semelhante. Pontos distantes significam deputados que votaram de forma muito diferente. Dessa forma, podemos identificar blocos e estruturas na política. Simplificando bastante, você pode imaginar o gráfico dividido em quatro quadrantes, a posição dos deputados e partidos nesse quadrante diz bastante sobre o lugar deles no cenário político:

quadrado

Ou seja, nesse gráfico os eixos não importam, o importante é a distância entre os deputados, essa sim significa alguma coisa. Eu pensei em mostrar as matrizes, como da outra vez, porque gosto bastante delas e porque elas representam a informação completa enquanto esse gráfico é uma projeção em duas dimensões de um problema a $N$ dimensões. Por motivos que eu pretendo algum dia terminar um post explicando, eu não perco tanta informação quanto vocês imaginam passando de $N$ a duas dimensões, essa é uma das maravilhas da técnica de análise de componentes principais. Esse fato é resultado da intensa polarização da estrutura política, mas isso eu discuto em outro post. Em cada gráfico, contei apenas deputados que votaram em mais de 30% das eleições em todos os anos daquela legislatura, a ideia é desconsiderar suplentes e gente que abandonou o barco para fazer qualquer outra coisa. Já tenho poucas votações, se eu os incluísse correria o risco de admitir um circo de estatística de péssima qualidade sujando meus dados, não podia correr esse risco.

E quais os dados desse gráfico? Usei apenas os votos de cada membro do congresso, ou seja, se eles disseram “Sim” ou “Não” às propostas que estavam em votação no plenário. Pela estrutura dessa conta, pouco importa se é sim ou se é não, eu estou interessado apenas em quando deputados votam de forma parecida ou divergente. Para quem gosta da matemática envolvida, uma frase apenas (que você pode ignorar se não entender): esse gráfico são as coordenadas dos dois componentes principais, ou seja, as coordenadas dos autovetores da matriz de correlação associados aos dois maiores autovalores, ponderados pelos autovalores.

Mas você, como eu e o Datena, quer as imagens. Sem mais, começamos com o primeiro, e mais turbulento, mandato da nova democracia brasileira.

  • Governo Collor/Itamar: 1991-1994

É complicado começar com esse período, porque ele é um dos mais complexos e interessantes. Os pontos que levanto aqui levam em conta os períodos seguintes, e o contraste que ele apresenta com os períodos de democracia mais estável.

O ano 91 apresenta uma política bem esparsa e pouco polarizada. Percebemos a região do governo dominada pelos herdeiros políticos dos partidos decorrentes do Arena: PP e PFL dominando essa região representando a “base aliada”. É complicado falar de governo e oposição em um mandato em que o presidente era de um partido minoritário, tão pequeno que foi excluído da análise, apresentou apenas quatro deputados na câmara e eu não queria gastar uma cor com o PRN, cores são preciosas nesses gráficos.

De 91 para 92 notamos uma polarização em um regime tríplice curioso. O governo é contrastado com duas oposições, de um lado o bloco PMDB-PSDB e do outro PT-PDT-PCdoB. Ainda que oposicionistas, esses blocos divergem entre si, criando essa tripla estrutura de poder que não dura muito tempo.

De 92 a 93 ocorre uma grande reviravolta no cenário político, o que imagino ser resultado da deposição do presidente em dezembro de 92. O resultado é uma espécie de governo de coalizão: base aliada e oposição se aproximam nas votações da câmara dos deputados. Eu nunca ouvi falar de tal processo, nem sei se era completamente conhecido, mas a estatística é clara: situação e oposição votaram de forma profundamente semelhante em 1993 contrastando drasticamente com o comportamento apresentado nos anos anteriores (e posteriores, como veremos).

Não me arrisco nas causas da coalizão, deixo a quem sabe do assunto. Poderia chutar que a queda do presidente e o temor de uma volta da ditadura poderia ter impulsionado os parlamentares a acertarem suas diferenças e terem votado, durante 1993, de forma semelhante em projetos importantes, ou a busca do presidente Itamar pelo apoio dos partidos mais à esquerda; mas posso estar, e provavelmente estou, completamente errado.

No final de 93, percebemos o PMDB migrando para a zona governista. Não quero estragar o suspense dos próximos vídeos, mas revelo que ele não sairá de lá tão cedo.

E onde está 1994?

Eu também gostaria de saber! Os dados que obtive da câmara mostram a convergência de dois fatores tristes para minha análise: em 94 houve um número extremamente reduzido de votações totais e uma proporção particularmente elevada de votações secretas, apenas 17 votações abertas dentre as 84 votações totais. Como base de comparação, tomemos os anos vizinhos: 93 teve 75 votações abertas e 179 totais, 95 teve 138 votações abertas e 248 totais. A pista para entender esse mistério talvez esteja no ano que é o segundo colocado em matéria de poucas votações abertas: 2002 (41 votações abertas e 116 totais). Aparentemente em anos de eleição em que há mudança de governo, há poucas votações e, dentro delas, uma proporção muito baixa de abertas. Não confirmo que essa seja a razão, ambos também são anos em que o Brasil ganhou a copa do mundo, deixo os números aqui para vocês e aguardo interpretações.

Uma palavra no código de cores. Os partidos progressistas são todos denotados na cor rosa porque, no futuro, irão se fundir. Isso foi uma decisão estética, falta cores no espectro visível para tantos partidos no Brasil. É importante também notar que o laranja, apesar de mesmo nome, não é o atual PSD, o “partido do Kassab”. Este PSD será extinto e o novo PSD irá se apropriar do nome, ele também se apropria da cor porque meu código de gerar esses gráficos é indiferente às sutilezas da política brasileira.

  • Governo FHC I: 1995-1998

O primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso representa uma grande estabilização na política nacional, definição razoavelmente clara de governo e oposição com uma forte base aliada composta dos partidos progressistas, do PFL, do PSDB e uma grande fatia do PMDB. Os movimentos durante esse período são suaves e eu não pude perceber nenhum fenômeno marcante na dança dos partidos durante esse ano. Percebemos um fato que se repetirá nos mandatos seguintes, parece ser uma lei da política brasileira: a cada mandato, a base aliada começa coesa e termina difusa. Nesse mandato, percebemos esse efeito mais claro no último ano. Minha interpretação é tão boa quanto a sua ou pior, mas isso pode representar a incerteza dos parlamentares quanto ao apoio que deve ser atribuído em ano de eleição. A difusão em 1998 é fraca comparada a 2002, o que pode ser explicado pela vitória esmagadora de FHC nas eleições de 1998, ou pode também ser explicada pelo fato de 98 ser a análise de mais de 100 votações enquanto 2002 apenas de 41. Ou seja, não tenho uma explicação muito convincente para esse comportamento.

Olhando esse gráfico, eu lembro do PMDB do senado em 2012, que estudei em outro post. Ainda que faça parte da situação essencialmente, ele é razoavelmente difuso e dança de acordo com o resto do conjunto. É fácil ver que o PMDB parece ser equivalente ao sistema total, apenas em escala menor. Para confirmar essa suspeita, precisamos do tira-teima, vejamos esse mesmo gráfico colocando o PMDB em destaque.

Esse gráfico mostra que durante o governo FHC I, como vai o PMDB, assim vai o Brasil. Fica a pergunta se o PMDB segue os movimentos da câmara ou se os define, mas uma coisa é clara: essa cauda do partido indica uma oposição enrustida em alguns de seus membros.

O maior problema desse período também é minha profunda falta de conhecimento das manobras políticas da época. O ideal é observar o gráfico, encontrar fenômenos e tentar explicar com as manobras, mas confesso que as manobras ajudam a ter algo para procurar. Fato é que entre meus sete e onze anos eu não assisti tanto ao Jornal Nacional, então minha conclusão final é: período tranquilo, bem definido com oposição reduzida e forte base aliada, sendo o PMDB o partido menos coeso, mais dinâmico e quase distribuído proporcionalmente em torno do espectro.

  • Governo FHC II: 1999-2002

Esse período apresenta um dilema na análise. Olhando de forma ingênua, podemos achar que a base aliada se desintegrou pouco a pouco conforme o governo avançava. Enquanto isso é coerente com o que leio do segundo mandato do governo FHC, o ano 2002 é particularmente problemático: até o PT parece se dispersar! Mas devemos lembrar que esse ano possui um número anômalo de votações, apenas 41, isso pode ser a maior causa da falta de coesão de todos os partidos. Usando um número tão pequeno de votações, podemos obter um resultado que não convergiu bem para a real coesão partidária, e certamente não tanto quanto os anos anteriores.

Notamos, contudo, a continuação da forte polarização governo-oposição, sendo a base aliada PSDB, PFL, PMDB, PP/PPB e PTB, a oposição liderada pelo PT e contendo PCdoB, PDT e PV, com o PL em terra de ninguém entre os dois mundos. Novamente, se alguém é um entendido no período, preciso de um norte para analisar esses resultados. A olho nu, não enxergo nada particularmente importante além da continuação do fenômeno de desintegração da base aliada no decorrer de um mandato. A explosão parece particularmente acentuada em 2002, mas não posso dizer o quanto disso é um efeito real ou da estatística precária que possuo. Pensei em fazer como 1994, que omiti, mas 41 parece mais justo que 17. Toda essa estatística não é de primeira qualidade, o fato de ter menos votações que deputados pesa, mas é o que tem para hoje. Fazemos o que podemos com o que temos.

O período seguinte é o governo Lula, mas prefiro estudar a fundo a transição FHC-Lula. Por si, ela valia um post, e é provavelmente a parte mais interessante desse post todo.

  • Transição FHC-Lula: 2001-2004

Lembrando que Lula foi eleito em 2002 e assumiu em 2003, o que é esperado em nossos gráficos? De forma ingênua, podemos esperar que os blocos oposição e governo troquem de lugar, como em uma quadrilha democrática, imaginamos que o movimento diagonal será intenso e que pouca gente ficará no mesmo lugar. E estaríamos errados.

E difícil analisar duas legislaturas diferentes, pois me parece injusto comparar quem saiu com quem entrou. Para evitar esse problema, reduzo o espaço amostral: nessa seção, analiso apenas os deputados que se reelegeram em 2002, ou seja, estavam presentes tanto em FHC II quanto em Lula I. Dessa forma, consigo segui-los durante os anos 2001-2004 sem me perder ou sem cometer injustiças. Vejamos o que acontece:

É muita coisa para seguir, mas conseguimos distinguir parte do comportamento esperado, e parte de um comportamento curioso. Enquanto há de fato uma troca entre oposição e governo, PSDB-PFL dançam quadrilha com PT-PCdoB-PDT-PL-PDT, trocando de lugares no jogo democrático quando o governo é assumido pelo presidente Lula. Mas há diversos outros partidos no balaio, e é fascinante como o movimento do PMDB-PP/PPB-PTB é drasticamente diferente dos outros partidos. Enquanto o primeiro grupo troca de lugar, o segundo estaciona e trata a mudança de governo com a naturalidade de uma quarta-feira. Para deixar esse fenômeno explícito, e provar que não estou inventando, reproduzo esse mesmo gráfico em dois: um com os partidos “ideológicos” (PT, PSDB, PFL, PCdoB, PDT, PL) em destaque e outro com os “governistas” em destaque.

 Não quero inserir juízos de valor nessa análise, quero bastante me conter, mas convenhamos, esses gráficos não parecem ser do mesmo período. Lembrando o que esse gráfico representa: em 2001, os deputados do PMDB, PP/PPB e PTB votavam profundamente alinhados com os votos do PSDB/PFL. Em 2003, esses mesmos deputados votavam exatamente como o PT votava! Certamente houve uma mudança na orientação partidária, nas alianças políticas, mas eu quero enfatizar que esse gráfico segue as mesmas pessoas. Em uma diferença de meses eles passaram de seguidores fiéis da direita tucana a apoiadores incondicionais de todas as propostas petistas de esquerda no plenário. O fenômeno é fascinante, e a matemática é implacável: esses deputados passaram por alguma experiência reveladora, como Saulo de Tarso, que os compeliu a se fazerem uma nova pessoa, um novo homem ou mulher, deixando para trás ideias que pregaram durante no mínimo quatro anos, e politicamente desde 1993.

Observando o gráfico com o foco nos ideológicos, percebemos o início da derrocada do PSDB. Notem que tanto PSDB quanto PFL deixam um “rastro” de deputados na base aliada, pontos azuis e roxos que se recusam a abandonar o barco quando afunda e preferem apenas pular para a nova embarcação vermelha que ancorou nas águas governistas. Entre o primeiro e segundo ano do governo, percebemos que esse rastro de deputados tucanos e frente-liberais é rapidamente absorvido em uma fagocitose política que não deixa traços. Foram eleitos pelo PSDB e PFL, essa foi a sigla que financiou suas campanhas de reeleição; mas entre maioria na câmara e integridade ideológica acabaram fazendo uma escolha bem definida. Fossem um ou dois eu poderia suspeitar de um avivamento esquerdista individual, mas a quantidade traz desconfiança.

  • Governo Lula I: 2003-2006

Estudamos esse governo em outro post, mas agora temos muito mais base de comparação com os governos anteriores. Enquanto naquele post eu disse que o comportamento de correlação entre as duas metades do primeiro governo Lula era compatível com a narrativa de um mensalão, revejo essa análise à luz dos dados dos governos tucanos anteriores. Parte desse movimento pode ser apenas esse fenômeno natural de desintegração da base aliada ao longo de uma candidatura. Ainda, o movimento petista em 2005 é ligeiramente diferente da dispersão normal, há um isolamento do PT em relação aos outros partidos da base aliada. Curiosamente, o PT volta ao centro da base aliada em 2006. Levanto duas possibilidades de explicação:

  1. O escândalo do mensalão isolou o PT em 2005, mas em 2006 a poeira havia baixado e a condição de normalidade se reestabeleceu.
  2. A desintegração da base aliada é um fenômeno natural, mas em 2006 as eleições presidenciais estavam praticamente certas e a base aliada não arriscou fazer compromissos com a oposição para poder mudar de barco caso afundasse.

Ou qualquer outra explicação que vocês encontrarem, não coloco minha mão no fogo por nenhuma análise política minha e quero deixar isso bem claro. É fundamental notar o caminhar da oposição durante esse mandato. A política brasileira desde 2003 tem sido a história da derrocada dos partidos de direita. Compare a força oposicionista (distância da base aliada e coesão partidária) petista durante o governo FHC e a força da oposição ao governo Lula. Não se enganem, notem a escala dos eixos, a distância horizontal é muito mais importante que a vertical. Matematicamente falando, nesse período PSDB e PFL votaram de maneira dispersa e não confrontam a base aliada na mesma ordem de grandeza que a oposição de períodos anteriores. Houve uma tentativa de coesão em 2005, provavelmente resultado do escândalo político dando força à oposição, mas 2006 amanheceu um novo ano e o PSDB explodiu na direção da base aliada.

  • Governo Lula II: 2007-2010

Lula foi uma poderosa cola na base aliada durante seus oito anos de mandato, e particularmente nos quatro últimos. A presença do PMDB se revela mais uma vez fundamental para o poder da base aliada: se os verdes estivessem no outro canto do gráfico, o PT passaria poucas leis durante o mandato de Lula. A base aliada é composta majoritariamente de PT-PP-PMDB-PR, enquanto oposição é PSDB-PFL/DEM.

Se a oposição terminou o primeiro mandato de Lula aninhando-se na base aliada, ela começa novamente bem longe e suficientemente coesa, para ir novamente se aproximando e se difundindo. É notória a presença do PSOL, seus três deputados como um sistema ternário de estrelas passeiam pelo espectro representando a coesão do partido e seu caráter oposicionista.

Percebemos a crise do PFL nesses dados, não apenas por sua mudança de nome para DEM. Note o que é esse mesmo período, focando apenas os frente-liberalistas:

Não apenas esse partido, central na base oposicionista desde 2003, visita constantemente a base aliada; ele pouco a pouco se dispersa e cede à tentação de abraçar a zona governista. O PSDB segue em parte, na natural aproximação entre base aliada e oposição que parece ocorrer ao final de cada mandato. O movimento do DEM se completará no governo Dilma, e sua trajetória de 1991 a 2013 não terá final feliz.

  • Governo Dilma: 2011-2013

Chegamos aos dias de hoje, e o governo Dilma apresenta uma estatística rica e, em minha opinião, mais interessante que a dos predecessores. O primeiro fenômeno observado é o surgimento do PSD, que não é o mesmo PSD de antes, a falta de originalidade no nome reflete minha falta de originalidade nas cores. Esse novo PSD é o tal “partido do Kassab”, e se alastra na região central do espectro político como uma epidemia que varre o DEM e pesca alguns parlamentares da base. Os democratas hesitantes do governo Lula encontram casa nesse novo PSD, e vale estudar esse fenômeno com mais cuidado para determinar exatamente de onde são recrutados os novos integrantes desse partido.

A criação do PSD consuma o destino do PFL/DEM, e completa sua trajetória de majoritário na base aliada em 1991 a uma sombra do que já foi em 2013.

Outro fenômeno interessante aparece durante o governo Dilma. Em outras legislaturas, pudemos observar a difusão da base aliada como um processo natural, mas há algo diferente no governo Dilma. Não é uma simples difusão, em 2012, o PT é isolado na base aliada, enquanto o restante dos partidos migra para uma região central formando uma segunda base governista. Pela primeira vez desde 1992 temos novamente uma estrutura com três polos de poder político: PT-PCdoB no topo da base aliada, o grande bloco governista PMDB-PP-PTB-PSD e o que chamávamos de oposição PSDB-DEM.

Nesse contexto em que as divergências entre o bloco central e o PT são grandes, vale questionar nossas noções antigas de oposição e base aliada. Ainda que o vice-presidente seja peemedebista, as correlações entre PMDB e PT parecem se deteriorar bastante conforme Dilma vai governando. A base aliada não se torna exatamente difusa com o tempo, ela se polariza em duas, como se o PMDB decidisse formar sua própria base aliada e não convidasse Dilma para a festa.

  • Conclusões?

Não tenho conclusões próprias desse experimento. Os gráficos estão corretos e minhas análises provavelmente erradas, peço novamente a contribuição de vocês para lerem esses dados e apontarem o que esqueci ou inventei. Como isso é ciência, divulgo o conjunto dos dados usados e os dados brutos, bem como os vídeos para download aqui. Façam suas próprias análises, questionem meus gráficos e combatam minhas afirmações, analisem como acharem adequado e justo; esse é o único jeito de se fazer ciência, o único de se chegar a uma resposta certa.

Minto, talvez tenha uma conclusão. Os gráficos que apresentei colocam em xeque uma noção política que tentamos usar no Brasil, mas falhamos: nossa tentativa de rotular partidos e parlamentares como de esquerda ou de direita. Em uma conversa de bar, se você perguntar sobre parlamentares de direita, provavelmente ouvirá como resposta a bancada evangélica, Jair Bolsonaro, Paulo Maluf; entre outros. Jair Bolsonaro e Maluf são do PP (base aliada), enquanto em 2013 foram considerados líderes da bancada (evangélica) os parlamentares João Campos (PSDB-GO), Anthony Garotinho (PR–RJ), Eduardo Cunha (PMDB-RJ), Lincoln Portela (PR-MG) e o senador Magno Malta (PR-ES) (Wikipédia), notamos que apenas o primeiro deles pertence a um partido dito de direita, os outros todos são membros de partidos profundamente enraizados na base aliada petista, nominalmente um governo de esquerda. Junte isso ao FHC, grande cacique do PSDB, defendendo abertamente a legalização da maconha para ter uma imagem colorida do que é a política brasileira.

À luz dos dados, e da valsa que foi acompanhar o espectro político durante 22 anos, não consigo mais usar termos ideológicos para a política brasileira. Não é desilusão, é estatística; esses dados são isentos de ideologia e mostram com quem cada parlamentar votou. Essa dança de pontos parece ser mais facilmente explicada como conjuntos de parlamentares que conseguiram alianças ou não conseguiram alianças, suas opiniões em programas sociais, dívida pública, direitos contraceptivos, privatizações ou direção econômica não parecem valer dois centavos, já que um mesmo parlamentar pode em 2002 apoiar azul e em 2003 votar exatamente como vermelho.

Isso me parece um resultado natural de nossa cultura política. Não votamos em partidos, votamos em indivíduos, em parlamentares individuais. Nessa lógica, o indivíduo ganha força sobre o partido, o que traz a riqueza desses gráficos. Se essa análise fosse feita na França ou nos EUA, os gráficos nos matariam de tédio, os partidos possuem muita força e um parlamentar que sai da linha não é facilmente perdoado, todo gráfico seria composto de blocos extremamente coesos e distantes. A quantidade de partidos e sua distribuição de tamanho seriam também muito diferentes: nos dois países mencionados eu poderia fazer este gráfico em preto-e-branco, enquanto aqui falta frequência no espectro visível para tanto partido; se eu precisasse representar o PSC eu teria que usar infravermelho.

Retomando a origem deste post, temos o golpe de 1964. Nele, alguma direita acusou a esquerda de uma tentativa de golpe e, para evitá-lo, tomou a iniciativa. Atualmente, essa noção está tão longe de nossa política quanto os gols de Pelé daquela época estão de nossa seleção. Se levantarem em nossa conversa de bar reclamações sobre o direitismo de Jair Bolsonaro, podemos argumentar que o partido de Bolsonaro foi estatisticamente indistinguível do PT durante o governo Lula. Suas declarações pouco importam, seu impacto é nos votos. Nessa discussão podemos ouvir que o PSOL é o único partido verdadeiramente de esquerda do Brasil, e podemos responder que ele foi estatisticamente mais próximo do PSDB que do PT ou do PCdoB durante todo o governo Lula e em 2011 os três deputados psolistas foram quase estatisticamente indistinguíveis de um típico deputado tucano. E se isso é uma conversa de bar, preciso perguntar: há direita no Brasil? Há esquerda? Não tenho respostas para essa pergunta, essa hipótese não foi necessária para minha análise. Tenho partidos vermelhos, azuis, verdes, rosa, cinza e laranjas surgindo, morrendo, brigando, valsando e compondo com complexidade e riqueza sinistras a câmara dos deputados, e, nela, definindo os rumos dessa nação.

Ecos do passado

Rookie

Abri hoje um site de notícias brasileiro, esperando ler sobre o grande evento do dia. Estadão, Folha, Uol, nenhum deles tinha nem na parte de ciência qualquer informação sobre o grande acontecimento vindo do polo sul, e dos confins do universo.  O New York Times o registra, felizmente, colocando em destaque na página principal. O destaque não é completo, a notícia está abaixo de uma análise sobre Putin e abaixo da morte da namorada do Mick Jagger. Com todo respeito à família da Sra. Scott, e com o povo na Crimeia, essas notícias não estão em proporção.

Cientistas em um observatório no polo sul anunciaram a detecção de ondas gravitacionais. Quem teve aula de relatividade geral e atravessou a aula de ondas gravitacionais lembra do amargo na voz do professor quando esse anunciava que o assunto da aula do dia nunca havia sido detectado, que aquela aula não estava tão longe de se estudar a anatomia do Pé-grande, mas essa notícia não veio apenas para confirmar, mais uma vez, a teoria de Einstein. Se fosse apenas mais uma prova de que uma teoria de 99 anos está correta, não merecia tanto espaço. O que foi feito no polo sul, no entanto, merece o Nobel.

O impacto dessa descoberta precisa de uma historinha para ser entendido, e é uma história bem antiga. Aliás, é a mais antiga: no princípio, houve uma explosão. Ninguém sabe exatamente o que aconteceu entre o segundo zero e $10^{-34}$ segundos, mas os astrofísicos e cosmólogos têm muitas teorias que começam a valer a parte dessa marca dos $10^{-34}s$. A melhor delas é a da inflação cósmica: o espaço-tempo expandiu de forma drasticamente acelerada e em seguida diminuiu a taxa de expansão. Essa teoria surgiu para explicar muita coisa estranha nesse nosso universo, muita gente tenta ajustar nessa teoria grandes questões não-explicadas, desde problemas na formação de galáxias à grande desproporção entre matéria e antimatéria no universo. Essa inflação deve ter causado muito alvoroço no universo, mas aconteceu em um passado tão remoto que muitos achavam impossível encontrar qualquer traço direto dela hoje. Muitos achavam, mas não todos.

Existe uma boa quantidade de radiação atingindo a terra que vem de um período muito antigo no universo. Essa radiação é como um barulho de aparelho eletrônico ligado em seu quarto, muito baixa, imperceptível, vindo de todos os lados. Recebemos essa radiação porque ela ainda está “chegando à Terra”, desde aquele período. A grande descoberta vinda do polo sul é sobre a polarização dessa luz. Eu comentei um pouco sobre polarização neste post sobre a luz, mas a ideia é que uma luz polarizada está oscilando em uma direção específica. A radiação cósmica de fundo está também oscilando em uma direção específica, dependendo de onde você a observa. O mapa de “direção de oscilação” é o que revela a natureza dessa descoberta, ele é algo assim:

Esse perfil na polarização da radiação cósmica de fundo é um resquício de uma época em que as ondas gravitacionais eram fortes o suficiente para deixar marcas nesse espectro. Ainda que elas atualmente sejam fracas demais para serem detectadas pelos instrumentos que temos, como se estivessem extintas, a imagem acima é o fóssil da inflação, como um inseto preservado em seiva de árvore que vem nos contar de um tempo em que o universo era jovem e cheio de problemas.

Para ser claro, não foram detectadas exata e diretamente ondas gravitacionais, e há gente séria trabalhando nisso, assim como nunca encontramos um dinossauro. Mas os ecos dessas ondas foram descobertos, e o escrutínio da comunidade científica será intenso para confirmar se as tais ondas são de fato a única, ou a melhor, explicação para esse quadro lindo de azuis e vermelhos que observamos na imagem acima.

A manchete no jornal deveria ser: primatas em um pedaço de rocha flutuando em torno de uma estrela mediana contemplam de relance informações sobre a origem de todo o universo. Formas de vida à base de carbono, usando giz, lousa e instrumentos fabricados na rocha, são capazes de deduzir detalhes sobre explosões de escala cósmica, sobre a formação das bilhões de bilhões de estrelas, das bilhões de galáxias, revelando um pouco mais sobre nossa relação com o cosmos, nosso lugar nele, nossas origens e nosso destino.