Arquivo do autor:Ricardo Marino

Sobre Ricardo Marino

Físico, estatístico, brasileiro, um pouco francês, falador, curioso, aperta a pasta de dente pelo meio e começa a comer coxinha pela base, que é o único lado certo de fazê-lo.

Branco como a neve

Rookie

No natal de 2010, fui esquiar pela primeira vez. Como brasileiro, havia visto neve havia pouco e já achava impressionante, e um pouco irritante. Neve é molhada, fria, incômoda, mas linda, de um branco puro que torna qualquer paisagem um filme da Disney. No esqui, descobri um outro lado dessa pureza branca, em pouco mais de duas horas na montanha meus olhos começaram a doer, arder, como se eu tivesse jogado videogame durante dez horas. Eu estava sem óculos de proteção porque não estava nevando, mas eu não sabia que o óculos não servia apenas para proteger dos flocos, o que atacava meus olhos era o branco da neve.

A exposição continuada a branco por todos os lados, céu, casas, chão; a reflexão de luz solar em grande intensidade por todas as superfícies estava fazendo meus olhos arderem. Perguntei-me, então, o que torna a neve tão branca? Por que nem a chuva, nem o gelo são de um branco tão puro, se são quase a mesma coisa? A resposta está na natureza do branco, da luz, da neve e em um álbum do Pink Floyd.

A luz é uma onda eletromagnética, mas isso não quer dizer muita coisa para quem não é do ramo. Na natureza existem dois campos: o elétrico e o magnético. Um campo é uma ideia física usada para entender a “influência” que uma partícula carregada exerce em outras. Se colocamos uma partícula carregada em um ponto e a deixamos parada, basta colocar outra perto para perceber que essa outra irá se mexer, ser atraída ou repelida pela primeira, dependendo de sua carga. E podemos trocar a posição dessa segunda carga e perceber que essa atração ou repulsão vai mudar bastante de acordo com o lugar que escolhemos. Vamos além, dizemos que a primeira carga gera um campo elétrico em torno de si, uma influência que, a cada ponto, fará a tal segunda partícula andar para uma direção. Ficou claro? Um desenho sempre ajuda:

Nesse desenho, as linhas indicam para onde uma outra carga positiva iria se colocada lá. E essas linhas é o que chamamos de campo elétrico, a influência da carga azul sobre o meio que a cerca.

Essa ideia é muito mais que uma abstração para ajudar a entender o eletromagnetismo. O campo elétrico é algo real, tanto quanto as cargas e as partículas, ele pode ser medido, absorvido, pode se mover e obedece a equações muito precisas, chamadas Equações de Maxwell, talvez a jóia da física clássica. Essas equações predizem também o campo magnético, que é muito parecido com o elétrico, mas afeta cargas em movimento. Há muita física séria envolvida nesses dois campos e em suas relações e origens, mas o que quero passar para vocês hoje é: existem, são dois e um vive em função do outro, não existem separadamente.

As equações de Maxwell nos dizem que uma variação no campo elétrico causa uma variação no magnético e vice-e-versa. Esse balé entre os campos é o responsável pela geração de toda energia elétrica que está à disposição em sua tomada, mas isso é assunto para outro post. Essa influência mútua gera um fenômeno fascinante: imagine-se dando, por um momento, um “tapa” no campo elétrico. Ele aumenta, o que fará o campo magnético também se mexer, ele, que era zero, aumentará em uma direção. O magnético mudando, o elétrico também será afetado, e começará a diminuir, o que, por sua vez, fará o magnético diminuir. Como um carro que de tanto dar ré acaba voltando ao ponto de partida e correndo para a direção contrária, o campo elétrico continua crescendo, mas para o lado oposto, o que também arrastará o magnético para o lado oposto de sua direção inicial. A descrição parece confusa, por isso vou tentar com outra imagem, tirada daqui, um blog de divulgação de nossos amigos gregos:

Para entender esse aumenta e diminui dos campos, fixe o olhar em um ponto dessa linha na base das flechas. Para esse ponto, os campos aumentam e diminuem constantemente. Essa dança entre os dois campos se propaga no espaço indefinidamente, até atingir algum objeto. Os físicos chamam esse fenômeno de propagação de uma onda eletromagnética, mas você deve conhecê-lo pelo nome luz.

Digamos que o vermelho seja o campo elétrico e o azul, o magnético. Se você está parado em um ponto dessa linha, como uma bóia sente as ondas do mar subindo e descendo, você sentirá o campo magnético aumentar, diminuir, mudar de direção, aumentar e diminuir. Esse processo ocorre a uma frequência, o campo elétrico vai e vem algumas vezes por segundo. Se ele ocorre entre 400 e 800 trilhões de vezes por segundo, seu olho consegue detectar essa onda, e você a interpreta como cores.

E isso é enxergar: ser capaz de absorver um campo elétrico oscilando a uma taxa entre 400 e 800 trilhões de vezes por segundo. Se ele oscila mais perto dos 400, ele campo elétrico será interpretado como a cor vermelha. Se mais perto do 800, será mais perto do violeta. As outras frequências intermediárias serão todas as cores do arco-íris.

Mas seu olho possui um comportamento ainda mais complexo que o de um simples detetor. Se ele recebe muitas ondas eletromagnéticas de diferentes frequências juntas, não é capaz de diferenciar uma por uma, ele interpreta essa mistura de ondas visíveis como uma nova cor, que não existe como cor pura. É dessa maneira que o rosa, o cinza, o bege e, em particular, o branco surgem, afinal, eles não estão no arco-íris, devem surgir de algum lugar.

A água, por razões muito interessantes, que não cabem nesse post (talvez em outro), é transparente. Mas assim como o vidro, ela é capaz de causar a difração da luz. A luz branca é feita de ondas de diversas frequências, e essa onda, dependendo de sua frequência, inclina mais ou menos quando atinge o vidro. O que acontece é o fenômeno dessa figura:

A luz branca, atingindo o prisma, se decompõe. Leis do eletromagnetismo nos explicam esse fenômeno, o ângulo de inclinação de um feixe luminoso dependerá de sua frequência, pouco, mas dependerá, e é isso que vemos.

O prisma de vidro é extremamente regular, bem como a água líquida, e por isso eles são transparentes e, no máximo, afetam a luz branca com uma pequena difração. Se colocarmos muitos prismas juntos, esse efeito se acumulará, um rebaterá a luz em outro que rebaterá no próximo, logo perderemos o controle de qual luz vai para onde. Um conjunto muito grande de prismas emitirá, praticamente, para todos os lados, luz branca (uma mistura caótica de todas as frequências que os prismas bagunçaram). Quando nosso olho recebe essa quantidade alta de ondas eletromagnéticas em tantas frequências, interpreta esse material como de uma cor branca muito pura.

A neve é apenas isso, pequenos pedaços de água solidificada que funcionam como os prismas de Pink Floyd. É pelo fato de ser um conjunto tão caótico e desorganizado de “prismas” que a neve é tão branca, tão pura e tão homogênea. Curiosamente, a desorganização completa é responsável pela homogeneidade, porque, sendo caótica, ela não privilegia lado nenhum, frequência nenhuma e emite apenas branco para todos os lados. Esse é o mesmo princípio do filtro solar, que, em uma explicação grosseira, é equivalente a uma pasta de vidro moído.

E quando meus olhos receberam aquela quantidade tão grande de branco por todos os lados, refrações e reflexões de tantos cristais que caíram do céu, não deveria ter me assustado o cansaço que me atingiu. E não apenas neles, o cansaço das quedas na neve, e cansaço de ver crianças de cinco anos deslizando sobre esquis com leveza, o frio cortante da neve que havia entrado em minha roupa em algumas das quedas; honestamente, o branco era o menor dos males. Depois de alguns dias, esquiar torna-se mais natural, e uma das atividades mais divertidas que fiz. Basta aguentar o começo, as quedas, as dores, a neve, as crianças e o branco, esse branco profundo, resultado do bombardeio de tanto caos gerado por difração e refração que, entendido por nossos olhos, torna qualquer paisagem muito bela.

Boas vibrações

Rookie

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O post de hoje é motivado pela figura acima. Encontrada nos meandros de minha timeline do Facebook, ela não representa nada novo além da curiosa persistência na crença moderna na astrologia, mas algo nela chamou-me a atenção: a escolha do planeta Saturno. E o divertido a respeito desse planeta é que sabemos bastante sobre ele, o que nos permite uma análise interessante da proposição da figura, que em 2013 Saturno de fato ajudaria nos relacionamentos dos nascidos no mês de fevereiro e março. A pergunta que pretendo responder nesse post é: como ele faria isso? E, espero concluir, perceberemos que os astrólogos estão muito mais avançados na ciência que qualquer um de nós.

Nós, físicos, conhecemos quatro, e apenas quatro, maneiras de interação possíveis. Nada pode influenciar nada a menos que seja usando uma dessas quatro vias: ou é uma interação gravitacional, ou é eletromagnética, ou é através da força forte, ou através da força fraca. Conhecemos bem as duas primeiras, e a vasta maior parte das interações de seu cotidiano (contato, som, temperatura) são resultado da segunda, o efeito de átomos possuírem elétrons e possuírem uma tendência a se repelirem se aproximados. A força forte é a interação responsável por manter o núcleo atômico no lugar, ela age apenas a distâncias muito curtas; enquanto a força fraca age apenas em algumas situações mais exóticas, como transformar nêutrons isolados em prótons, ou no raro evento de algum neutrino interagir com a matéria que conhecemos. Você ouve falar pouco nelas pois, a menos que estejamos no mundo do muito, muito pequeno, onde até átomos são grandes, elas pouco aparecem.

Dizer que são apenas quatro as maneiras de interação que conhecemos é um pouco mais profundo que dizer apenas “não podemos mover coisas a menos que usemos uma dessas quatro forças”. Se não somos capazes de usar nenhuma dessas interações em um objeto, ele não saberá de nossa existência, é até impossível qualquer forma de comunicação com ele, sua vida continua como se não existíssemos! Seja qual for a forma como Saturno influencia a vida amorosa dos nascidos depois do carnaval e antes da páscoa, ela deve, segundo a física que conhecemos, ser uma ou mais dessas quatro formas. Para entender melhor, vamos calcular com carinho cada uma delas, sempre comparando com outros objetos que conhecemos.

Considerei apenas as interações diretas Saturno – Terra, desconsiderando possíveis vias indiretas como Saturno – outro planeta – Terra ou Saturno – asteroide –  Bruce Willis – Terra, por dois motivos: o primeiro é o fato de Saturno não ser muito responsável pela segurança cósmica de nosso planeta, quem faz isso é Júpiter, que absorve incontáveis detritos espaciais e torna a órbita terrestre a mais limpa do sistema solar ((De acordo com o critério de Soter, que compara a massa do planeta e a massa dos detritos de sua órbita.)). Ainda, se por acaso Saturno nos salvasse do final dos tempos, não posso considerar isso um fenômeno que só afetaria o relacionamento dos nascidos entre o carnaval e a Páscoa.

  • Influência gravitacional

Saturno é grande, muito grande; e esse é um dos argumentos favoritos dos que defendem a astrologia. Se a Lua é capaz de afetar as marés, como Saturno não poderia afetar os humores? Empolgados com essa possibilidade, precisamos permanecer sóbrios e calcular com calma o que Saturno representa em termos de gravidade. A massa desse planeta é grande, cem vezes a do planeta Terra, algo perto de $5,6.10^{26}$Kg, ou seja, 56 seguido de 25 zeros, parece promissor. A gravidade, contudo, perde sua força rapidamente com a distância, e Saturno está longe. Se dissermos que a distância entre a Terra e o Sol vale 1 u.a. (unidade astronômica), então a distância entre Saturno e a Terra oscila no ano entre 9 e 11 u.a., o que equivale, em média, a $1,5.10^{12}$m. Usando a fórmula da gravitação, descoberta por Newton, talvez o mais brilhante dos astrólogos, podemos usar esses dados para chegar a conclusões interessantes.

Estou nesse momento sentado em um trem ao lado de um senhor francês aparentemente simpático, careca e um total desconhecido; ainda, sei que a influência gravitacional que ele exerce em mim (imprimindo uma aceleração equivalente a $2,2.10^{-8}$ m/s²) é maior que a de Saturno ($1,5.10^{-8}$ m/s²). Um caminhão a dez metros de distância me puxaria gravitacionalmente com mais força que Saturno e, preciso dizer, essa força é bem pequena. E não digo pequena em comparação à gravidade da Terra, ou à da Lua, digo pequena pelo fato de que nenhum instrumento de medida de atração gravitacional poderia detectar a influência de Saturno antes de 1980. Recentemente, com gravímetros com base em supercondutores, é possível sentir variações de gravidade na ordem de grandeza da influência de Saturno, mas ela certamente poderia ser confundida com a gravidade da neve acumulada no telhado, ou do próprio ar que está na sala ao lado. Para todos os efeitos, em termos de gravidade, é como se Saturno não existisse: se ele explodisse hoje, apenas os astrônomos saberiam, e talvez todos nós se, ao final de um ciclo Maia, os detritos desse planeta, em uma coincidência cósmica, nos atingissem.

  • Influência eletromagnética

Saturno não foi descoberto por sua gravidade, mas por seu brilho, ou melhor, pela reflexão da luz do Sol. Quando eu era menor, ouvi pela primeira vez que a Lua não tinha brilho próprio, que ela apenas refletia a luz solar, achei, a partir daquele dia e por um bom tempo, que a lua fosse um grande espelho, um planeta inteiro feito da mais pura prata; quase ficava bravo por ver nela um rosto triste, e não minha própria imagem acenando. Demorei a perceber que refletir a luz não significa ter qualquer compromisso com a luz refletida, como, em uma estrada deserta e mal-iluminada, colocar alguém em frente ao farol do carro dará a impressão de que a pessoa brilha.

Qual não foi a surpresa dos cientistas ao descobrir que Saturno irradia perto de duas vezes o que recebe de energia do Sol! Não bastando esse planeta possuir seus misteriosos anéis, cuja explicação está longe de completa, ele possui um mecanismo de geração interna de energia! A teoria mais aceita dessa geração de radiação vem da composição de Saturno, ele é 3/4 hidrogênio e 1/4 hélio. O hélio, mais pesado, “cai” no planeta, ou seja, penetra cada vez mais fundo no corpo planetário e a essa “queda” é creditada a geração de energia. Como se o hélio, ganhando velocidade ao se aproximar do centro, batesse no hidrogênio em volta e o esquentasse. Se você, como eu, aprendeu que planetas não geram energia própria, conhece agora uma resposta apropriada a seu professor da quinta série.

Medir a temperatura de Saturno, exatamente por esse estranho mecanismo, é um desafio, e um problema em aberto na astronomia. No entanto, conhecemos bem as frequências que podem ser emitidas por Saturno, e temos um grande cobertor que nos protege da vasta maior parte de toda radiação cósmica: a água da atmosfera. Esse elemento safado, o $H_2O$, tem a impressionante propriedade de absorver quase todas as frequências do espectro eletromagnético, exceto uma pequena faixa, que coincide com a única faixa que conseguimos observar. Se a água deixa apenas passar a luz que enxergamos, não é à toa que ela é transparente, mas não se engane, ela absorve quase todo o resto da luz. Dessa forma, estamos bem seguros de que, por mais mirabolante que seja a radiação emitida por Saturno, ela não somente é fraca como é provavelmente absorvida pela atmosfera. A luz solar que ela reflete, e que pode nos atingir, não é nada mais que uma versão júnior da radiação que recebemos do Sol todos os dias. Uma pequena quantidade extra de água no céu à noite seria capaz de eliminar completamente a influência de Saturno em nossas vidas, parando as ondas eletromagnéticas que dele saem. Ou seja, se um astrólogo argumenta que a radiação eletromagnética de Saturno nos afeta, ele tem que levar em conta se o dia está nublado ou não. Fazer previsões astrológicas a longo prazo, para todo um ano, exige mais meteorologia do que qualquer computador jamais seria capaz de produzir.

  • Influência da força forte

Essa força é um pouco misteriosa, não temos uma fórmula exata para ela. Seu poder é fazer um próton atrair o outro quando estão muito, mas muito perto, e também torna prótons capazes de atraírem nêutrons, isso permite a existência e estabilidade dos núcleos atômicos. Mas essa força tem um alcance muito curto. Enquanto as forças gravitacional e elétrica ficam fracas com o inverso do quadrado da distância, ou seja, se você dobrar a distância entre dois planetas a força entre eles diminui em quatro vezes, se triplicar, ela diminui nove vezes; nosso melhor modelo para a força forte, o potencial de Yukawa, nos dá uma triste notícia: essa força decai exponencialmente com a distância.

E o que isso significa? Sem medo de errar, posso afirmar que qualquer átomo presente na Terra exerce mais força forte em mim que todo o planeta Saturno. Essa força é aproximadamente proporcional ao número de prótons; esses, em Saturno, são da ordem de 10 seguido de quarenta zeros, o que tornaria a força de Saturno $10^{40}$ vezes mais forte que o átomos. No entanto, se o átomo estivesse a um metro de mim, a diferença entre as forças pela distância seria algo perto de 10 seguido de (4 seguido de onze zeros) zeros vezes menor. Esse número é tão pequeno, mas tão pequeno, que o escrever completamente com uma mão ágil que desenha três zeros por segundo tomaria meses de sua vida. Comparando com um átomo do outro lado da Terra, Saturno perde feio. Se um astrólogo argumenta que Saturno nos influencia pela força forte, ele também deve colocar em seu mapa astral cada átomo presente no planeta Terra e explicar sua influência.

  • Influência pela força fraca

Essa é talvez a mais difícil de argumentar, mas vou tentar. A força fraca possui, como a forte, um alcance muito curto, então qualquer esperança de ser afetado pela força fraca de Saturno diretamente é vã e pífia. No entanto, Saturno poderia enviar neutrinos, partículas cuja única forma de interação mensurável é a força fraca. Elas funcionariam como uma espécie de radiação, bombardeando o planeta e alterando suas propriedades com força fraca; parece promissor.

Mas se você é um leitor antigo do blog, deve ter lido algo sobre os neutrinos, e sobre como é extremamente difícil detectar um deles. Nos anos 80, uma safra boa de detecção de neutrinos eram 24. Não 24 milhões ou milhares, 24 neutrinos foram detectados em um ano naquela época, e foi um grande avanço; a tabela que os mencionava ganhou muitas citações acadêmicas.

Um neutrino é tão difícil de interagir com qualquer coisa que você precisaria fazer um neutrino atravessar chumbo do comprimento de mais de mil vezes o sistema solar para que a chance de um neutrino interagir com o chumbo seja maior que a chance de não interagir (fonte). Ademais, o sol já é responsável por um tal bombardeio de neutrinos que Saturno, se por acaso emitisse tal partícula, seria totalmente ofuscado pela imensidão do bombardeio dos neutrinos solares. Em outras palavras, precisaríamos medir mais que 24 neutrinos para que algum deles viesse de Saturno. A chance de ter um neutrino interagindo com nosso corpo, ou com algo perto dele, já é perto de ganhar na loteria; que esse neutrino tenha vindo de Saturno, nem atravessando um ano-luz de loterias eu conseguiria tal feito.

  • Conclusão

Não há qualquer base científica possível na afirmação de que Saturno teria qualquer influência em nossa vida além de ser um pequeno ponto no céu noturno longe das cidades grandes. Nenhuma das formas de interação conhecidas pelas leis da física são capazes de explicar o poder atribuído a Saturno, ou a qualquer outro planeta, pelos astrólogos.

Resta a alternativa evidente: uma tão sonhada quinta interação! Se os astrólogos atribuem a esses astros a capacidade de afetar nossa vida e destino, certamente estão propondo uma maneira nova de interação, uma maneira de ação desses planetas em nossa vida! E, por isso, convido, aliás, imploro aos astrólogos por um debate, uma aula sobre essa quinta interação. Certamente eles confirmarão nossas teorias de grande unificação, apresentarão um grupo de simetria melhor que o $SU(5)$ para unificar gravitação com mecânica quântica, talvez o $ S_7$, mas prefiro não antecipar; coloco-me como aluno desses grandes mestres da ciência.

No entanto, qualquer voz que se levantar para explicar essa quinta interação em termos vagos, genéricos, usando palavras como “interação espiritual” ou qualquer outra mutilação esotérica de termo científico deve, ao menos, se dignar a explicar o que quer dizer em termos minimamente parecidos com os que acabo de utilizar com cada interação que conhecemos. Deve explicar o que Saturno tem de diferente dos demais (composição? órbita? temperatura?), deve explicar as características dessa interação (qual seu alcance? qual seu bóson associado? há mais de um bóson? ele tem massa? qual sua carga associada?), deve explicar no que ela age, deve explicar como essa ação pode desencadear um fenômeno tão complexo quanto afetar um relacionamento (ou seja, alterando neurônios, hormônios, e até eventos maiores, como permitindo que você chegue a tempo em um encontro), deve também explicar a razão de apenas afetar pessoas nascidas enquanto o planeta Terra estava em um trecho específico de sua órbita (que pouco tem a ver com a órbita de Saturno) ou deve assumir que não sabe do que está falando.

Mas se você, como eu, ainda não encontrou evidências dessa quinta força, resta apenas, a cada previsão astrológica, repetir quatro perguntas para garantir que ela está bem colocada, pois qualquer um desses fatores afeta mais nossa vida que o planeta dos anéis: há algum objeto denso no quarto ao lado, que poderia afetar a gravidade tanto quanto Saturno? O céu está nublado? Como estão organizados os prótons de toda a China? Ou, se foi atingido por um neutrino de Saturno, já pensou em jogar na loteria?

Essa tabela do xkcd.com resume bem o argumento talvez mais poderoso contra misticismo em geral, o argumento econômico:

A crença em tais misticismos persiste, acredito, porque revela a ilusão humana de que basta fazer parte de um grupo seleto de iluminados para que você tenha lampejos sobre o futuro inacessíveis a outros, e a recusa eterna da aceitação do acaso e do aleatório como imprevisíveis. Evoluímos por e somos treinados para sermos capazes de reconhecer padrões e relações de causa e consequência, a astrologia, como toda forma de futurologia mística, é a deturpação dessa capacidade na negação da existência do aleatório, do imprevisível, do complexo. É uma tentativa do homem de obter poder sobre sua realidade, ainda que esse poder, o da ciência do futuro, seja uma ilusão; e astrólogos são excelentes em previsões vagas que se aplicam a tantos casos que, ao invés de mudar a teoria da astrologia, é sempre melhor dizer que a observação não foi bem assim, que ela deu certo. É o homem tentando não ser fraco, comum e sensível às vicissitudes e intempéries do destino. Como disse Pessoa:

Não sei se os astros mandam neste mundo,
Nem se as cartas —
As de jogar ou as do Tarot —
Podem revelar qualquer coisa.

Não sei se deitando dados
Se chega a qualquer conclusão.
Mas também não sei
Se vivendo como o comum dos homens
Se atinge qualquer coisa.

A física possui muitos fenômenos muito estranhos, indistinguíveis de magia se você não a conhece a fundo. Todos eles nos ensinam uma coisa em comum: a realidade é um lugar complicado. Assim, deixo vocês com o aviso: duvidem sempre de qualquer solução simples, de qualquer relação de causalidade ou de correlação que é simplória e rápida (Saturno afetará seus relacionamentos em 2013!), de qualquer padrão que vai contra o bom senso, duvidem das promessas fáceis, de qualquer adivinhação, tirem sua coragem de onde puderem, mas se armem sempre com a razão. Porque ela funciona.

Mudanças

Geek Hardcore Rookie

Como vocês devem ter percebido, o endereço do blog mudou. Espero que o redirecionamento esteja funcionando corretamente, não quero ninguém se perdendo no caminho. Transferi o blog para um domínio próprio, com hospedagem própria, ainda que continue usando a plataforma WordPress para escrever e, como vocês, para ler. Assim, não estarei mais usando o endereço ricardoamarino.wordpress.com.

As razões da transição são muitas, mas, se eu pudesse resumir, foi uma busca por liberdade. Antes eu não podia mexer no HTML ou no CSS do site, ou seja, minhas opções de personalização eram muito limitadas. Não podia instalar plugins, o que me obrigava ou a improvisar, ou a confiar em ferramentas nativas do WordPress que nem sempre eram as melhores. Assim, os leitores podem esperar, a partir de hoje, as seguintes mudanças:

  • Um LaTeX decente. Agora tenho um plugins capaz de escrever fórmulas matemáticas aceitáveis dentro e fora do corpo do texto. Antes, o WordPress criava uma imagem das fórmulas e colava bizarramente no texto, costurando tudo como o monstro do Frankenstein, deixando fórmulas abaixo da linha do texto, com tipografia fraca e nem sempre fácil de enxergar. Tudo isso é passado, como vocês podem ver por essa fórmula: \[= {1 \over r^2}{\partial \over \partial r} \left(r^2 {\partial f \over \partial r} \right)+ {1 \over r^2 \sin \theta} {\partial \over \partial \theta}\left(\sin \theta {\partial f \over \partial \theta} \right)+ {1 \over r^2\sin^2 \theta} {\partial^2 f \over \partial \phi^2}\]
  • Inclusão de notas de rodapé, que aparecem quando você coloca seu cursor sobre alguma delas. ((Como esta.)).
  • Otimização para encontrar o blog em sistemas de busca e, com sorte, aumentar o número de leitores!
  • Incorporação de scripts do Mathematica, o que me permite até fazer gráficos manipuláveis por vocês.
  • Criação do modo “tela cheia” ao clicar no título de um post, deixando a leitura mais agradável e com menos distrações.

Naturalmente, isso acompanha uma série de mudanças no layout que venho considerando há um bom tempo, em especial a fonte, o tamanho da fonte, a divulgação da categoria do post logo no início, o jogo de cores e outras frescuras que minha neurose não deixaria passarem. Ainda deve haver links quebrados, fórmulas tortas e outros desalinhos, por favor, não hesitem em me avisar. Espero que gostem das mudanças, conto com a opinião de vocês para melhoras, e desejo uma boa leitura.

Caiu no blog

Rookie

O WordPress é mesmo uma maravilha. Além do excelente suporte para equações, apesar de eu achar que quando as coloco no meio do texto elas ficam um pouco mais para baixo do que deveriam, ele fornece estatísticas bem divertidas sobre os acessos. Para comemorar o aniversário de um ano do blog, e seus mais de 20.000 acessos, posto aqui as pesquisas mais interessantes que fizeram no Google e caíram nesse site. Em algumas, tento fornecer a resposta que o autor da pergunta não encontrou, em um dia em que, definitivamente, não estava com sorte. Não é um post nada científico, apenas divertido, entra na categoria do “algo mais” de que o blog fala.

  • vídeo aula de matemática provar por teorema ou cáculo que a função tem um zero ou (uma raíz, ou uma solução) no intervalo [ 5/2 ; 4]

Quanta preguiça. Não bastava buscar a resposta da questão na internet, ainda queria videoaula? Sua resposta era: a função deve ser contínua, deve valer mais que zero de um lado, menos que zero do outro, e você usa o teorema do valor intermediário para provar que, em algum ponto no meio do caminho, vale zero.

  • os fermions se subdividem em

As subdivisões dos férmions que são partículas elementares são quarks e léptons. Quarks formam prótons e nêutrons, léptons são os elétrons e neutrinos.

  • correlação entre gravidade e eletromagnetismo

Rapaz, boa pergunta, essa ninguém sabe. Não é de hoje que tentamos unificar a gravidade com o eletromagnetismo. Nos perturba o fato de as equações de Maxwell serem parecidas com as da gravidade em vários aspectos, e muitas tentativas lindas de unificação foram tentadas. Em particular, veja os trabalhos de Kaluza e Klein, uma tentativa linda e fracassada de incluir o eletromagnetismo como uma dimensão extra nas teorias gravitacionais de Einstein. Corta meu coração dizer que essa teoria não dá certo, mas ela é mãe de muita coisa moderna, em especial as chamadas teorias de Yang-Mills.

  • invocar o demonio de maxwell

Chame dois físicos estatísticos, um quântico, um engenheiro que saiba construir portas infinitesimais, dois padres e um pastor evangélico.

  • tem muitos inseto na parede

Sim! Tente comprar uma tela para janela ou um daqueles inseticidas de colocar na tomada. Evite matar o inseto com tapas, isso suja bastante a parede e, se você deixar para limpar outra hora, não é tão simples tirar.

  • a derivada de f (x,y), no ponto p = (1,2) na direção do vetor i+j é sqrt(2).2, ou seja 2 vezes raiz de 2, na direção do vetor -2j é -3.

Eu confirmo, é de fato -3, se o gradiente da função no ponto $p$ for $(2\sqrt{2}-\frac{3}{2},\frac{3}{2})$.

  • na onde eu posso encontrar numeros naturais

Kronecker costumava dizer: “Deus criou os números naturais, o resto é obra dos homens”.

  • existe muita coisa para ser descoberta em matemática

Você nem imagina! A cada descoberta que se faz em matemática, três perguntas surgem acompanhando. Essa gente nunca está satisfeita, nunca está desocupada. De problemas famosos, existem os sete problemas do milênio (agora seis), ainda penso em fazer um post para cada um deles.

  • porque nao enxe de pueira na pata da lagartixa

E quem disse que não? Confesso não sabe a resposta dessa, poderia chutar que a poeira de fato é muito grande para a lagartixa, ou que a pata dela não é úmida o suficiente, mas seria apenas chute. Fica a pergunta, se alguém souber essa resposta.

  • o livro de fisica do moyses vol 3 é bom?

Não.

  • é verdade que quanto mais longe a estrela fica , mas brilhosa ela é ?

Não, e estou bem certo de que é o contrário.

  • como escrever teorema do valor medio no wolframalpha?

Mean-value theorem.

  • demonios que batem na porta

Só conheço o de Maxwell e o de Laplace. Se precisar escolher, tenha mais medo do de Laplace.

  • assunto subgrupos, porque 8z nao é subgrupo de 16z

O contrário é verdade, $16\mathbb{Z}$ é subgrupo de $8\mathbb{Z}$, assim como os múltiplos de 4 são um subgrupo dos pares.

  • o demonio passa de um para outro?

Segundo a tradição cristã, há apenas registros de demônios passando de pessoas a porcos, ou apenas sendo expulsos. Segundo o islã, demônios não tomam o corpo de pessoas, são apenas influenciadores de opinião. Segundo o budismo e o ateísmo, demônios não existem.

  • se vc passa o nº do seu titulo p/ quasquer candidato tem c/ ele saber se a pessoa voto nel.

Não.

  • qual a resposta? seleção em cada um dos três menus em quatro opções, tem oito e o terceiro tem seis. quantas configurações possíveis tem o jogo?

Oi…?

  • como calcular raiz quadrada apróximada de um número real

Eis uma pergunta divertida! Suponha que você queira calcular a raiz do número $P$. Escolha um número qualquer $x_0$ que esteja de preferência próximo ao que você imagina ser a raiz de $P$. Em seguida, calcule o valor $x_1=\frac{1}{2}\left( x_0+\frac{P}{x_0}\right)$. Repita essa operação com esse novo valor calculado, ou seja, defina $x_2=\frac{1}{2}\left( x_1+\frac{P}{x_1}\right)$. Lá pelo $x_4$ sua aproximação já estará muito boa, dependendo do valor $x_0$ que você começou. Esse método já era conhecido dos babilônios, e ainda é um dos melhores métodos de se extrair raiz quadrada.

Reality show

Rookie

Todo mês de janeiro, vejo não apenas minhas mídias sociais, mas também portais sérios de notícias e meios de comunicação serem invadidos por notícias de um reality show. O Big Brother costuma ocupar por três meses aquele espaço que os jornalistas não conseguiram preencher, dissertando cada detalhe do que pessoas extremamente convencionais fizeram ontem e hoje, levando pessoas em um sofá a se fascinarem vendo outras pessoas sentadas em um sofá.

São um fenômeno moderno, pois seria muito difícil antes de 1950 se obter tais equipamentos de vigilância sobre pessoas. E, confesso, não fazem jus ao nome, não é possível se dizer um retrato da realidade se as pessoas, sabendo das câmeras e microfones, agem de acordo, quebrando a magia da espontaneidade. Por isso, cada vez que leio sobre BBB, ou sobre qualquer outro desses, penso no primeiro, mais honesto e mais interessante de todos os reality shows: Farm Hall. Também conhecido pelo codenome “Operação Epsilon”, Farm Hall faz Boninho parecer uma criança amadora. Para entender esse reality, precisamos entender um pouco de física nuclear.

Ao final da segunda guerra mundial, os aliados e o eixo disputavam uma corrida científica acirrada em busca da arma suprema que definiria o combate: a bomba nuclear. Qualquer lado que a obtivesse primeiro, tendo condições de lançar, poderia mudar o curso da guerra, e da história mundial. O lado dos aliados é bem conhecido, em Los Álamos eles juntaram os maiores gênios da física nuclear e de partículas jamais reunidos, encabeçados pelo gênio italiano Enrico Fermi e aquele que se chamaria de destruidor de mundos, J. R. Oppenheimer. Eles conseguiriam pouco a pouco controlar as reações nucleares e canalizarem essa tecnologia na forma da arma suprema, infelizmente lançada no fatídico agosto de 1945 contra o Japão.

O eixo, contudo, tinha seus campeões: Otto Hahn, Max von Laue, Weizsacker,  entre outros, somando dez ao todo, liderados pelo gigante da física Werner Heisenberg. O projeto alemão da bomba atômica avançou, eles sabiam que a bomba era possível; ainda, antes que pudessem conceber a arma, os dez maiores físicos da Alemanha foram capturados pelos aliados na capitulação alemã.

Os aliados não sabiam, no entanto, o quanto esses homens sabiam da bomba atômica, e o quão perto os alemães estavam de produzir aquela arma. Para descobrir, entre julho de 45 e janeiro de 46, eles colocaram esses dez cientistas em isolamento completo em uma casa no interior da Inglaterra, com microfones escondidos espalhados em toda a casa. Começaria o primeiro Reality Show da história, e provavelmente o mais interessante.

A casa de Farm Hall.

As transcrições de Farm Hall são fascinantes. Após um mês de confinamento, os cientistas recebem notícias, através de um jornal, do bombardeamento de Hiroshima e Nagasaki. Otto Hahn, um dos descobridores da fissão do urânio, contempla suicídio; Max von Laue, um grande opositor do regime nazista, comemora não terem conseguido terminar o projeto. Mas a grande pergunta, e a que torturava Heisenberg, era a mais simples: onde eles haviam falhado? Como os americanos haviam conseguido?

Frente à notícia do lançamento da bomba, Heisenberg reage furioso, alegando ser falsa. Uma semana depois, organiza uma espécie de conferência improvisada, usa o jornal como referência e começa um colóquio para definir onde estava o erro alemão. Essa discussão não é apenas interessante do ponto de vista histórico, ela é uma aula de física nuclear, literalmente, eu tive minha aula de fissão nuclear usando trechos das transcrições de Farm Hall. Ao invés de explicar como funciona a fissão, deixo Heisenberg o fazer, citando a abertura de sua conferência a seus colegas prisioneiros:

HEISENBERG: Vou começar recapitulando, mais uma vez, os principais dados envolvendo o U235 (urânio com massa 235, altamente radioativo). Vou dizer rapidamente o que acontece, talvez, nessa bomba. Um nêutron presente no U235 encontra, bem rápido, em seu percurso, um outro núcleo de U235. Duas coisas podem acontecer: ou ele é difundido elasticamente (ricocheteado, sem perder energia), essa difusão pode ser elástica ou inelástica, ou ele causará a fissão (quebra) do núcleo. Se é difundido, ele parte com uma velocidade muito similar à que chegou, e isso não altera o fato de que ele provavelmente provocará a fissão de um outro núcleo em seguida. A probabilidade de perder nêutrons é então nula. O processo ocorre naturalmente até o nêutron encontrar um núcleo de U235 e quebrá-lo. Nessa fissão, outros nêutrons são produzidos, e uma reação em cadeia se inicia. Se tivéssemos uma quantidade infinita de U235, ela jamais pararia, pois cada fissão produz de 2 a 3 nêutrons. Esses nêutrons continuariam o processo, e o número de nêutrons aumentaria exponencialmente. No entanto, a produção de nêutrons está em competição com o processo de fuga de nêutrons da massa. De fato, como a massa que possuímos é finita, os nêutrons que são produzidos na superfície e cuja velocidade inicial aponta para fora irão escapar e não participarão da fissão. A questão que se coloca é se essa perda de nêutrons consegue superar a produção, e qual é a massa mínima para que a reação ocorra e cause uma explosão.

A figura a seguir fica por minha conta:

Heisenberg acaba descobrindo seu erro, e, noto, seu orgulho deve ter ficado abalado, pois não foi nada muito sofisticado. Cometendo um erro que aflige todos os físicos, usou sua intuição no sentido errado e, simplificando um termo para facilitar suas contas, desprezou um valor importante demais e acabou calculando que a massa de urânio necessária para a bomba seria milhares de vezes maior do que o real valor. Isso diminuiu muito o interesse alemão em tentar desenvolver a bomba, pois tal quantidade de urânio enriquecido seria impraticável, muito cara e levaria muito tempo para ser produzida.

O erro de Heisenberg foi achar que valores médios podem substituir valores reais. Ele conseguiu medir o percurso médio de um nêutron no urânio, e sabia a velocidade média do nêutron. Com isso, ele tinha um tempo médio que o nêutron levava para atingir um urânio, e com isso conseguia calcular quantos nêutrons seriam produzidos por segundo. Eis o erro, essa multiplicação é uma simplificação grosseira demais, dizimada pelo fator exponencial da produção de nêutrons. Usar os valores médios despreza o fato de que os primeiros nêutrons produzidos afetarão outros átomos de urânio, que afetarão outro, em uma reação em cadeia que privilegia claramente os nêutrons produzidos no início. Um processo exponencial não pode ser analisado com valores médios, você precisa tomar um grande cuidado, escrever a equação diferencial da difusão e incluir um termo de geração de nêutrons adequado. Heisenberg calculou esse valor usando apenas movimento Browniano e valores médios, superestimando o valor da massa crítica da bomba e matando boa parte do incentivo governamental para a produção da arma.

Outros fatores impediram o projeto alemão. Heisenberg tivesse talvez percebido seu erro se possuísse medidas precisas de grandezas nucleares, mas isso foi em grande parte impossibilitado pela guerra da água. Para medir grandezas nucleares em fissão, você precisa de alguém para absorver os nêutrons quando quiser parar a reação e não arruinar sua experiência. Os alemães usavam um material conhecido como água pesada, que é água convencional com mais nêutrons do que devia. Esse material era produzido como resultado da fabricação de fertilizante, mas ele exige uma quantidade colossal de energia e o único país com essa disponibilidade energética era a Noruega, com suas grandes hidroelétricas. Em operações especiais de espionagem e sabotagem dignas de filme, os aliados conseguiram desativar a usina hidroelétrica norueguesa na Operação Gunnerside, e forças de resistência norueguesas afundaram o barco que transportaria a água pesada restante à Alemanha.

A história da física nuclear é fascinante, com momentos de aventura e tragédia, contendo Farm Hall como um dos mais interessantes exemplos do perigo que representa um cientista que sabe demais. Nunca se confirmou o real interesse de Heisenberg na construção da bomba, mas suspeito que nem era esse o motivo de tanta fúria ao saber que outros tinham construído. Acredito que ele queria menos que os alemães tivessem a bomba do que saber a razão de seu erro, saber onde os americanos haviam acertado, saber qual de seus cálculos estaria errado.

Farm Hall também possui trechos emocionantes, como quando a casa recebe a visita de Sir Charles Darwin, físico, neto do biólogo, e Otto Hahn pergunta se ele tem notícias de sua família. Por fim, coloco um último trecho, com uma parte do dilema moral dos cientistas alemães, tirado daqui e traduzido livremente:

HEISENBERG: O fato é que toda a estrutura do relacionamento entre os cientistas e o estado alemão era tal que não estávamos 100% interessados em fazer, e, do lado deles, o estado confiava tão pouco em nós que ainda que quiséssemos, não teria sido fácil conseguir.

DIEBNER: Porque os oficiais estavam interessados em resultados imediatos. Eles não queriam trabalhar com políticas a longo prazo, como os americanos.

WEIZSAECKER: Ainda que tivéssemos tudo o que quiséssemos, não era nada certo que teríamos chegado tão longe quanto os americanos e ingleses estão agora. Não há dúvidas de que estávamos tão próximos quanto eles, mas é fato que estávamos convencidos que a coisa não ficaria completa durante a guerra.

HEISENBERG: Bom, isso não é completamente verdade. Eu diria que estava completamente convencido da possibilidade de fazer um motor a urânio, mas nunca pensei em fazer uma bomba, e do fundo do coração eu estou aliviado que era um motor e não uma bomba. Preciso admitir isso.

WEIZSAECKER: Não acho que devamos criar desculpas agora por não termos conseguido, mas temos que admitir que não queríamos conseguir.

WIRTZ: Acho característico que os alemães fizeram a descoberta e não usaram, enquanto os americanos a usaram. E preciso dizer que não achei que eles ousariam usar.

Eis um reality show cujo pay per view eu compraria com gosto. No entanto, meu Facebook, os portais de notícia e os assuntos de meus amigos foram invadidos por outro, não por Heisenberg ou Weizsaecker, mas por Anamaras e Dhominis; não por dramas reais de pessoas geniais, mas por intrigas e personagens tão pífios que podemos até desejar, no auge de frustração e raiva, uma solução nuclear para tudo isso.