Arquivo do autor:Ricardo Marino

Sobre Ricardo Marino

Físico, estatístico, brasileiro, um pouco francês, falador, curioso, aperta a pasta de dente pelo meio e começa a comer coxinha pela base, que é o único lado certo de fazê-lo.

Vendavais

Rookie

Nessa onda de protestos, não me atrevo a comentar. Não sei o que está acontecendo, e, se alguém não está confuso, está mal informado. Física nenhuma explica a maior parte das mobilizações, estranhamente súbitas, pacíficas ou violentas, justificadas ou casuais. Ninguém consegue me dizer se o que vejo é a segunda revolução francesa ou uma micareta da classe média, então também não arrisco. Ainda, como físico estatístico, fenômenos coletivos dessa sorte sempre me interessam. Hoje falo de um de meus favoritos, o vento, e tento tirar algumas lições da física das moléculas do ar.

Em uma aula minha sobre termodinâmica, eu explicava, em meu jeito empolgado característico de quando falo de termodinâmica, que temperatura é o movimento dos átomos; que quanto mais quente, mais rápidos eles estão. Uma aluna não gostou, não concordou, e, comparando com sua experiência, decidiu perguntar: “Mas se o vento é o ar em movimento, por que ele é frio?”. Ah, que pergunta complicada.

E um dos problemas da pergunta foi induzido por mim, quando, simplificando, compliquei. Dizendo que temperatura e velocidade são a mesma coisa, esqueci de dizer que o ar, como todo gás, possui moléculas em velocidades altas indo de um lado para o outro. O ar entre seu rosto e o computador, por mais parado que pareça, está a uma velocidade mais alta que qualquer carro de corrida, mais alta que a maior parte dos aviões.

No século XIX, os grandes da física estatística acreditaram na teoria atômica, uma noção ainda controversa na época. Eles acreditaram que o ar é feito de átomos e que a temperatura vem do movimento dessas partículas, que o calor não é uma partícula, mas como as partículas se movem. Maxwell, o maior dentre nós naquele século, tomou coragem, acreditou em suas equações e deduziu a velocidade média dos átomos no ar: algo perto de 500m/s. Não apenas ele calculou a média, ele determinou a densidade de probabilidade dessa velocidade. Essa densidade, conhecida como distribuição de Maxwell-Boltzmann, tem essa cara:

max_boltzNesse gráfico, a distribuição A significa um gás em temperatura menor, enquanto o B representa um mais quente. É fácil ver que no B haverá mais moléculas com mais velocidade, e no A as moléculas estarão mais concentradas em regiões de velocidade mais baixa. Maxwell descobriu isso usando apenas matemática, um feito impressionante em uma época em que a própria existência dos átomos era questionada. Como de costume, ele tinha razão, ainda que nenhuma verificação disso fosse possível na época. Maxwell deduziu o que seria a distribuição de velocidades de partículas se movendo em direções aleatórias e cujas colisões seriam como as de bolas de bilhar; sendo esse gráfico o resultado da colisão de muitas, muitas dessas partículas.

Maxwell não pôde checar isso, mas eu posso. Não sou uma fração do físico que foi Maxwell, mas meu celular tem mais poder computacional que a NASA quando enviou o homem à Lua, isso deve me ajudar. Escrevi novamente um pequeno código com as seguintes configurações: temos bolinhas em diversas velocidades indo para todos os lados, elas colidem e trocam energia e momento nessas colisões. A energia total se conserva e o momento também, o que torna todas as colisões perfeitamente elásticas, como se eu tivesse programado um grande jogo de bilhar sem caçapas. Também fiz um gráfico da velocidade de cada bolinha, um histograma, que diz quantas bolinhas possuem aquela velocidade naquele instante. Como elas se movem, o histograma muda, mas, usando bem pouco de sua imaginação, você pode perceber que ele é exatamente a distribuição de Maxwell-Boltzmann.

IMAGEM

Novamente, coloquei em um link à parte para não pesar seu navegador. Essa simulação é mais complicada e eu recomendo fortemente que você use o navegador Chrome para que ela fique mais fluída. Mais uma vez, bonus round! Você pode mexer nas bolinhas e, dando energia, aumentar a temperatura, que aparece no gráfico em amarelo! Com isso, consegue perceber exatamente que temperatura é a velocidade das partículas, que era o que queria explicar a minha aluna.

O vento é um tipo diferente de movimento. Enquanto as partículas se mexem aleatoriamente em alta velocidade, se eu coloco uma tendência nelas a irem para um lado, se eu coloco uma pequena diferença entre esquerda e direita, então há o que chamamos de vento. Mas note que qualquer brisa é profundamente mais lenta que a velocidade individual de qualquer molécula, um tornado não chega perto de reproduzir a velocidade nem de uma partícula lenta que compõe aquela grande massa de ar.

O vento é frio porque ele, atingindo sua pele, rouba aquela camada de ar já aquecido que a cobria e força sua pele a esquentar essa nova camada de ar; com isso, perdendo calor no processo. O vento não é frio, você sente que ele é frio porque perde calor, mas essa sensação é uma ilusão. Encostar em um metal ou em uma borracha pode fazer parecer com que o metal esteja mais frio, mas a situação é a mesma; ambos estão na mesma temperatura, mas um rouba mais calor seu que o outro.

Pessoas são mais parecidas com átomos do que gostariam. Em toda aglomeração há gente de todo o espectro político, muitas em alta temperatura, algumas motivadas demais, que até causam estragos. E há pessoas passivas, apáticas, e cada uma em sua direção. Em primeiro lugar, não se pode julgar um gás pelas partículas que estão com temperatura duas, três, cinco vezes a temperatura média. Acredite, no ar à sua frente, há partículas com velocidades superiores a 5.000Km/h, elas poderiam fazer você entrar em combustão expontânea, mas são uma minoria. Em segundo lugar, um gás, sozinho, não vai a lugar nenhum; é necessário haver uma tendência para irem para o lado; você não sente as partículas, sente apenas o vento. Tenha sempre ciência de que seguir apenas a direção que lhe dá na telha contribui apenas como um ruído aleatório na estatística, um desvio esperado da média, que será compensado por quem pensa no oposto e está presente; é preciso consenso, foco, ou seremos apenas partículas ricocheteando em uma caixa. E, em terceiro lugar, não podemos nos esquecer da termodinâmica: apenas em alta temperatura é possível uma mudança de estado.

A vontade dos átomos

Rookie

Eu gostava de botânica no colégio, não sei exatamente a razão, e muitos professores tentaram me convencer a não gostar. Quando tive uma vez, em um exercício, que ordenar alguns seres vivos em escala evolutiva, coloquei a árvore em primeiro lugar, seguida do homem e do resto. Perdi pontos, fui reclamar, a professora ficou espantada com a resposta, não entendia como eu podia achar um organismo sem sistema nervoso, sem quase sistema nenhum, aliás, mais evoluído que o ser humano; e eu não conseguia entender como ela não percebia que a fotossíntese, sozinha, era mais impressionante que tudo isso.

Ainda que ela tivesse razão, plantas não possuem quase nenhum sistema, eu argumentei que elas não precisavam dessa parafernalha toda, desses adendos que criamos porque não somos capaz de transformar luz em matéria. Ainda, um detalhe nunca me convenceu: nessa ausência de sistemas, como as árvores carregam água e sais para o topo de suas copas sem qualquer sistema circulatório? Seiva e sangue me eram parecidos demais, mas a seiva parecia subir dezenas de metros magicamente, enquanto nós empurramos o sangue nos poucos metros que temos a pesadas bombeadas. Quando, no cursinho, dei vazão a essa inquietude, a resposta veio da professora de biologia: quem carrega nutrientes para o topo das árvores são a osmose e a difusão; mas isso não é resposta, é apenas um nome. A professora explicava osmose como “a tendência da água a ir do meio menos concentrado ao mais concentrado em soluto”, mas o que era isso? Ela explicava como se a molécula de água quisesse se afastar de suas companheiras, como se átomos tivessem vontade, deu-nos até uma analogia de que, em um ônibus, você sempre busca o lado mais vazio para ficar. Átomos nada querem, nada pensam e não usam transporte público, aquilo não me convencia.

E quando reclamei que aquilo não colava, que não fazia sentido, ela desdenhou. Disse que se eu não entendia aquilo, como pretendia ser físico? Calei-me com o orgulho ferido, mas hoje penso que deveria ter insistido. Era exatamente porque queria ser físico que exigia uma resposta em termos científicos, ela me respondia quase como Aristóteles, que insistia em argumentar no cansaço dos corpos durante o movimento para justificar por que um objeto desacelera enquanto anda. Hoje penso que uma resposta mais refinada ela provavelmente não tinha, esta me veio apenas muito depois, entre um curso e outro de física estatística.

Ademais, osmose não é a razão da subida da água nas árvores! As plantas são capazes de criar uma grande diferença de pressão através da evaporação, como uma bomba de água em escala microscópica, algo muito impressionante. Esse vídeo explica a questão de maneira muito linda. No seguinte do post, comento sobre a osmose. O caso da árvore não é o melhor, então esqueçamos esse exemplo por enquanto e falemos apenas em soluto andando pela água, ou da água andando de um meio a outro.

É verdade que essa parece ser a tendência da água, e de várias outras coisas. Óleo também gosta de ir do meio com muito óleo para um de pouco óleo, sódio e potássio vivem brigando para se equilibrarem em proporções em nosso cérebro, tudo o que não é sólido costuma apresentar esse comportamento. Aprendemos isso no colégio com os nomes de osmose e difusão, mas, se quer saber, acho que o conceito é mais simples que os nomes. O que não nos contam é que átomos, moléculas, gases e líquidos não querem ir para uma direção, ele vão para todas as direções possíveis, aleatoriamente. Mas, de nosso ponto de vista, parece que estão indo para uma direção específica.

Isso não é tão simples de entender. Para explicar, vou representar com alguns desenhos que deram bastante trabalho para fazer. Como eles são bem pesados, vou apenas colocar o link aqui, se eu os mostrasse na mesma página do post, não há browser que aguente.

Imagine um sistema com água de um lado e outro produto, em vermelho, de outro lado. O que vemos, de nosso ponto de vista, é uma imagem parecida com isso:

IMAGEM

O que certamente parece magia, o produto, que chamamos de soluto, sobe a coluna contrariando a gravidade. A animação é um pouco lenta, confesso, mas tenho que zelar pelo processamento de seus computadores. O que aprendemos na escola é isso: o soluto “quer” ir do meio “hipersoluto” para o meio “hiposoluto”, o vermelho que ir do meio “hipervermelho” ao “hipovermelho”, do muito vermelho ao pouco, como se quisesse se afastar de seus colegas.

Isso não poderia estar mais longe de uma explicação mal dada. O que esquecem de nos avisar no colégio é que há muito mais no meio em que a difusão acontece que apenas as bolinhas que se difundem! Faltou, por exemplo, incluir a água nessa história, e talvez o comportamento das bolinhas fique mais claro nessa nova imagem:

NOVA IMAGEM

O soluto não escala ou não invade nenhum território porque quer, pois nada querem, nada desejam, eles apenas vão para todos os lados, mas a água também vai para todos os lados! A tendência natural das coisas é, depois de tempo o suficiente, estarem completamente misturadas, não porque elas querem ir de onde há muito para onde há pouco, mas porque isso é o estatisticamente mais provável. Nessas simulações, eu apenas inseri as fórmulas matemáticas para a resolução de um problema de colisão de duas partículas e deixei rodar. Foi razoavelmente difícil, e eu poderia ter ainda otimizado mais, mas o resultado ficou bonito, fiquei orgulhoso.

E isso explica a vontade dos átomos. Eles não querem, vão para todos os lados, mas, por um fenômeno estatístico, dão a impressão de se deslocarem de onde há mais átomos para onde há menos. Os vermelhos parecem subir e os azuis parecem descer, é verdade, mas isso esconde o fato de que há também azuis subindo e há também vermelhos descendo. Ao final do dia, teremos um sistema completamente misturado.

A difusão e a osmose ocorrem na planta, claro, e é dessa maneira que os nutrientes se espalham pela seiva, mas a razão da subida da seiva não é osmose, é mais complexa. A difusão dos nutrientes pela água, que, essa sim, é sugada pelo tronco, isso é certamente difusão. Os nutrientes não escolhem se espalhar pela água, não decidem ocupar regiões de poucos nutrientes como pessoas ocupam lugares vazios no ônibus, eles apenas vão para todos os lados e, conforme a água é sugada pelo tronco, acompanham esse movimento.

Se você achou a simulação muito lenta, essa era minha intenção, a difusão é um processo bem lento. Pretendo em seguida usar essas simulações para explicar mais coisas sobre os átomos, elas deram muito trabalho e pretendo capitalizar nesse algorítmo. Enquanto isso, divirtam-se com esse hipnotizante balé dos átomos, acompanhando um deles na aventura, divertindo-se enquanto ele, indo para todos os lados, encontra outros, rebate, sobe e desce, ainda que contra sua vontade.


Bonus Round: Se você gostou das animações, brinque com elas. Usando o mouse, você pode empurrar bolinhas e, em uma linguagem física adequada, acelerando uma, você aumenta a temperatura de todo o sistema!

Arte abstrata

Rookie

O post de hoje é curto e mais divertido que informativo. Estou viajando e com pouco tempo de compor um texto interessante, mas não quero deixar esse espaço abandonado, então decidi fazer um experimento com a lousa comum de meu laboratório.

Meu laboratório consiste em três corredores que se encontram em uma sala comum, a sala de café, onde há uma máquina de café, sofás e uma lousa grande. Em uma pausa do trabalho, ou após uma conferência, é comum encontrar físicos com suas canecas e xícaras discutindo temas e ideias, a lousa está lá para dar suporte a esse tipo de discussão. Vários físicos durante vários dias usam essa lousa, sem ninguém se dar ao trabalho de apagá-la completamente, e o próximo apagando apenas o necessário para expor suas ideias. O resultado é, no mínimo, interessante: todas aquelas ideias expostas e discutidas ficam representadas nas lousas por seus símbolos, cujo significado apenas o autor e seu interlocutor têm acesso, mas, na minha opinião, não deixam de ter um aspecto estético, uma beleza intrínseca do pensamento transmitido, do sentido oculto daqueles símbolos, aquele memorial às ideias. Durante dois meses eu, uma vez a cada duas semanas (aproximadamente), fotografava a lousa e a apagava. Apresento a vocês uma arte diferente, muito abstrata, e, para quem gosta, bonita de sua maneira única.

2013-02-06 13.19.38 2013-02-20 17.34.47 2013-03-01 17.58.27 2013-03-07 18.05.21 2013-03-22 13.02.09

Na saída da Peugeot

Geek

Certa vez, um amigo me contava de sua saída do trabalho, na sede da Peugeot. Todo dia, ele era confrontado com a escolha entre dois ônibus para chegar a seu destino, cada um saindo de um ponto diferente de sua empresa, mas ambos passando por sua casa. O primeiro, mais moderno, confortável, equipado e vazio, passava uma vez a cada quinze minutos. O segundo, mais rampeiro e cheio, passava a cada cinco minutos. No dilema entre conforto e pressa, meu amigo estabeleceu um critério: olharia o ponto do ônibus moderno e, se já houvesse alguém esperando, julgaria que valia a pena esperar, pois um tempo razoável já haveria se passado. Se não houvesse ninguém, voltaria nos sacolejos do outro ônibus.

Ao comentar seu critério com um colega de profissão, foi-lhe dito que era absurdo, pois a pessoa poderia ter acabado de chegar, que esse critério era o mesmo que nada. Ele propôs o problema a nosso grupo de amigos, e eu instintivamente achei um bom critério, se não pelo bom senso da explicação, por um instinto físico de considerar que haver uma pessoa representava ganho de informação, como se a entropia tivesse diminuído em relação à situação “eu não sei nada sobre o ônibus”, que é o caso original. Mas sem falar de entropia ou o que o valha, eu precisava provar meu ponto, e precisava conversar um pouco sobre como pessoas esperam um ônibus.

Esse post deveria ser simples e rápido, acabou saindo do controle, peço desculpas antecipadas pelo malabarismo de probabilidades, assuntos e variáveis, não consegui fazer mais simples; juro que tentei.

Imaginemos um ponto de ônibus ideal em que passa um ônibus a cada $T$ minutos. No caso de meu amigo, $T=15$ minutos. Suporei que a chance de um passageiro chegar ao ponto para esperar é sempre a mesma em todos os instantes durante esse tempo $T$, ou seja, estou desconsiderando efeitos que possam aumentar ou diminuir drasticamente a chegada de pessoas durante a espera de um ônibus, esse modelo não funciona bem para as 18h da empresa. Suponha que, a cada leva, o ônibus recebe em média $\lambda$ pessoas. Não sei os valores para o caso de meu amigo, mas eu noto que esse número é importante. Se o ônibus recebe a cada quinze minutos em média 10 pessoas, não é trivial saber exatamente o que haver uma pessoa esperando quer dizer; contudo, se ele recebe 50, haver apenas uma indica que ele acabou de passar.

Então temos que a cada $T$ minutos, em média, juntam-se $\lambda$ pessoas no ponto. Suponho que o fluxo de pessoas para o ponto seja constante, e me pergunto: qual a chance do ônibus receber $\lambda-1$ pessoas? Ou $\lambda+1$? Ou $\lambda/2$? Tais perguntas não são simples, mas são todas respondidas pelo que chamamos de distribuição de Poisson.

Tenho um intervalo de $T$ minutos entre um ônibus e outro, sei que as pessoas podem chegar a qualquer momento durante esses minutos. Minha única informação é que a média de pessoas que chegam ao final de $T$ minutos é $\lambda$. Para estudar essa estatística, vou usar um truque matemático para modelizar a situação como um processo binomial. O truque é dividir meu intervalo de 15 minutos em 900 intervalos de um segundo. A escolha do segundo é para fins didáticos, o correto seria escolher dividir 15 minutos no maior número de intervalos possíveis, cada um com uma duração cada vez menor. Vou supor que o ônibus encontra, em média, $\lambda=20$ pessoas no ponto. Assim, posso dizer que a chance de uma pessoa chegar em um dado segundo é $20/900$. A razão para essa divisão em 900 segundos é que essa afirmação só é possível se duas pessoas não puderem chegar no exato mesmo segundo. Se eu tivesse escolhido dividir meu intervalo em minutos, não faria sentido dizer que a chance de uma pessoa chegar em um minuto é $20/15$, essa chance é maior que um! Seria como cometer o erro de dizer que, se a chance de tirar cara ao tirar uma moeda é de 50%, então em três lançamentos a chance é de 150%!

Essa divisão nos intervalos bem pequenos serve para eu transformar a chegada de pessoas no ônibus em um processo de zeros e uns. Cada segundo receberá um número, 0 se nenhuma pessoa chegou nesse segundo, 1 se alguém chegou nesse segundo. A cada segundo, portanto, estará associada uma probabilidade $p$ de chegar uma pessoa. O que sabemos é que, se o número de segundos é $N$, então $Np=\lambda$, o número médio de pessoas será a probabilidade de uma chegar em um segundo vezes o número total de segundos. Isso só é possível porque a chegadas das pessoas não possui correlação e porque ninguém pode chegar no mesmo segundo que outra pessoa.

Para calcular a probabilidade, ao final de $N$ segundos, de se obter $k$ pessoas no ponto, preciso pensar que aqueles $N$ segundos ganharam um número $k$ de uns e um número $N-k$ de zeros. Ou seja, se quero saber a chance de 10 pessoas chegarem no ponto no final de 900 segundos, terei que dentre esses 900 segundos 10 deles receberam pessoas e 890 não receberam. A probabilidade de 10 segundos específicos receberem pessoas é de $p^{10}(1-p)^{890}$, pois aqueles dez devem receber e os 890 restantes devem não receber pessoas. Mas como não sei quais segundos receberam, devo considerar todas as combinações possíveis de segundos que receberam essas pessoas, devo multiplicar esse valor por $\binom{900}{10}$. A probabilidade $p$ pode ser determinada dividindo o número médio de pessoas 20 pelos 900 segundos, e teremos a probabilidade de encontrar 10 pessoas no ponto de ônibus: $P(k=10)=\binom{900}{10}\left(2/90\right)^{10}\left(1-2/90\right)^{890}$, um valor um pouco maior que 0,55%.

Esse raciocínio, contudo, tem problemas. Em primeiro lugar, eu deveria, por honestidade intelectual, dividir o intervalo em bem mais que 900 segundos, deveria usar 900.000 milissegundos para garantir que ninguém mesmo chegará no mesmo intervalo e poder usar essas contas com segurança. Mas se os cálculos já ficaram feios com 900, afinal, o binomial envolve fatoriais desse valor, imagine fazer contas com 900.000 fatorial! Esse caminho é impraticável, e por isso Simeon-Denis Poisson vem a nosso socorro. Através de uma aproximação malandra ((conhecida como aproximação de Stirling)), Poisson nos diz que:

\[ \binom{N}{k}\left(p\right)^{k}\left(1-p\right)^{N-k}\underbrace{\longrightarrow}_{N\to \infty} \frac{(Np)^k}{k!}e^{-Np}\]

O que é muito oportuno, porque sabemos que $Np$ é a média de pessoas que está no ponto após os quinze minutos, ela é igual a $\lambda$! Essa aproximação é cada vez melhor se o número de divisões do intervalo de tempo é maior, e eu quero mesmo é que isso seja grande, quanto maior for, menor é a chance de duas pessoas chegarem no mesmo intervalo de tempo. Então eu mando $N$ logo para infinito e digo que que a probabilidade de se encontrar $k$ pessoas no ponto de ônibus depois de quinze minutos (lembro que $T=15$ nesse caso) é:

\[P(k|T)=\frac{\lambda^k}{k!}e^{-\lambda},\]

onde $\lambda$ é a média de pessoas que encontro no ponto de ônibus no final dos quinze minutos de espera, essa é conhecida como a distribuição de Poisson. Saberei, com isso, a probabilidade de encontrar um número $k$ de pessoas ao final de cada espera de 15 minutos:

poisson_dist_20

Isso ainda não resolve meu problema, mas ajuda bastante, como veremos. Sei qual a probabilidade de encontrar $k$ pessoas após 15 minutos, pergunto então: qual a probabilidade de encontrar $k$ pessoas após $t$ minutos? Se com os 15 minutos bastou usar a distribuição de Poisson com parâmetro igual à média de pessoas que chegam em 15 minutos, com os $t$ minutos bastaria usar a mesma distribuição, trocando a média dos 15 pela média dos $t$. Como a taxa de chegada dos passageiros no ponto é constante, a média evolui linearmente de 0 a $\lambda$, ou seja, a média $\lambda(t)$ de passageiros no ponto em um tempo $t$ é $\frac{\lambda}{T}t=\mu t$, onde $\mu$ é a taxa de chegada das pessoas. A probabilidade de encontrar $k$ pessoas no ponto no instante $t$ será:

\[ P(k|t) = \frac{(\mu.t)^k}{k!}e^{-\mu t}\]

Essa distribuição dependente do tempo é conhecida como processo de Poisson, e descreve muito bem a chegada de pessoas em um ponto de ônibus. Temos agora exatamente a probabilidade de encontrar um número qualquer de pessoas em um instante qualquer de espera, queremos saber, então, se aquele critério de meu amigo presta a alguma coisa. Para isso, precisamos conversar um pouco sobre probabilidade condicional, e sobre como calcular probabilidades quando já sabemos algo sobre o processo.

O que quero é a chance de terem se passado $t$ minutos uma vez que há $k$ pessoas no ponto. Vou chamar essa chance de $P(t|k)$. O que tenho até agora é a probabilidade de encontrar $k$ pessoas uma vez que se passaram $t$ minutos, ou seja, tenho $P(k|t)$. Essas probabilidades parecem similares, mas possuem sentidos completamente diferentes; uma é a chance de chover se há nuvens, outra é a chance de haver nuvens se chove. Se quero de uma obter a outra, preciso usar o teorema de Bayes:

\[P(t|k) = \frac{P(k|t) P(t)}{P(k)},\]

onde $P(k)$ é a probabilidade de encontrar $k$ pessoas no ponto sem qualquer informação sobre o horário, e $P(t)$ é a probabilidade de estarmos no instante $t$.

Há um problema grave na definição de $P(t)$, pois a chance real de estarmos no instante $t$ é nula, porque $t$ é um número real e a chance de estarmos exatamente às 13h43m10s325ms901μs… é zero, não é possível atribuir a probabilidade de se obter um número real no meio da reta real. Mas podemos pensar na chance de estar entre dois horários, entre o primeiro e o segundo minuto, por exemplo. E essa chance, naturalmente é igual para todos os minutos, não temos razão para, chegando ao ponto de ônibus, supor que ele passou faz 3 minutos, ou 5, sem olhar para os passageiros que estão no ponto. Meu amigo, aliás, quer saber se há alguma diferença entre $P(t|k)$ (probabilidade de estar em $t$ sabendo $k$) e $P(t)$ (probabilidade de estar em $t$ sem saber nada sobre $k$). Se o tempo total possível de espera é de $T$, a chance de estarmos em um intervalo de tempo de tamanho $\Delta t$ é igual para todo intervalo: $\frac{\Delta t}{T}$. Para o propósito de nosso problema, vale a pena pegar intervalos muito pequenos de tempo. Ao escrevermos $P(t)$ queremos, na verdade, dizer “probabilidade de estar em um intervalo de tempo $dt$ muito pequeno centrado em $t$”, ou seja, $P(t)=\frac{dt}{T}$.

Calcular $P(k)$, por outro lado, não é tão simples. Devemos pegar a chance de encontrar $k$ pessoas no ponto no instante $t$ ( $P(k|T)$ ), multiplicar pela chance de estar em $t$ ( $P(t)$ ) e somar em todos os $t$’s possíveis. Essa é a única maneira de calcular a chance de ter $k$ sem saber nada sobre $t$, é somar a chance de estar em qualquer $t$ possível. Matematicamente, isso é fazer a integral: $\int_0^T P(k|T)\frac{dt}{T}$. Trabalhando um pouco, chegamos a:

\[ \int_0^T \frac{(\mu.t)^k}{k!}e^{-\mu t}\frac{dt}{T} = 1-\frac{\Gamma(1+k,T\mu)}{T\mu k!}\]

Chamamos essa função estranha do lado direito de função Gamma incompleta, ela é apenas um jeito elegante de escrever $\Gamma(s,x) = \int_x^{\infty} t^{s-1}\,e^{-t}\,{\rm d}t$, uma integral que não sabemos fazer, mas que numericamente sai com tranquilidade.

Depois de muito malabarismo, chegamos à resposta mais completa ao dilema de meu amigo. Dadas as seguintes hipóteses:

  • O ônibus passa uma vez a cada $T$ minutos.
  • O ônibus encontra, a cada vez, em média, $\lambda$ pessoas esperando no ponto.
  • A taxa de chegada de pessoas no ponto de ônibus é constante, igual a $\mu=\lambda/T$.
  • Ninguém corre para pegar o ônibus (hipótese que provavelmente torna o modelo inútil).

Então a densidade de probabilidade $P(t|k)$ é:

\[ P(t|k) =\frac{P(k|t)P(t)}{P(k)}=\frac{\frac{(\mu.t)^k}{k!}e^{-\mu t}\frac{1}{T}}{1-\frac{\Gamma(1+k,T\mu)}{T\mu k!}},\]

Essa é a densidade de probabilidade. Para descobrir qual a chance de que o último ônibus tenha passado há $\tau$ minutos, você deve integrar essa expressão de 0 a $\tau$. Felizmente temos o Mathematica para isso. Assim, ao encontrar $k$ pessoas no ponto, a chance de que o ônibus tenha passado há pelo menos $\tau$ minutos é:

\[ P(\tau)=\int_0^\tau P(t|k)dt=\int_0^\tau \frac{P(k|t)P(t)}{P(k)}=\frac{\int_0^\tau\frac{(\mu.t)^k}{k!}e^{-\mu t}\frac{dt}{T}}{1-\frac{\Gamma(1+k,T\mu)}{T\mu k!}}=\frac{\Gamma(1+k,\tau\mu)-\Gamma(1+k,T\mu)}{1-\Gamma(1+k,T\mu)}\]

Tomemos valores realistas. Sabemos que $T=15$. Vamos supor que a cada chegada, em média, o ônibus encontra $N=6$ pessoas. Para que meu amigo fique feliz com o post, apresento o resultado para encontrando duas pessoas ($k=2$), uma pessoa ($k=1$), não vendo ninguém no ponto ($k=0$) e não sabendo absolutamente nada sobre o ponto ($k=?$), essa é a probabilidade de que o ônibus tenha passado há pelo menos $\tau$ minutos:

poisson_bus_stopÉ claro que a chance é alta de que o ônibus tenha passado há ao menos um minuto, bem como é bem difícil que ele tenha passado há 14 minutos ou mais. Com isso, fechamos o problema. Percebemos alguns aspectos importantes do critério de meu amigo. Primeiro, ele não é equivalente a não saber nada sobre o ponto, as distribuições são bem diferentes. Segundo, observar uma única pessoa, sendo a média de embarque seis, indica que é mais provável que o ônibus tenha passado faz quatro minutos ou menos, você conta ainda com uma espera de uns bons onze minutos. Pelo número de pessoas que encontra no ponto, é capaz de, negociando com sua espera, decidir se se rende ao desconforto ou se volta paciente e confortavelmente para sua casa.

A caixa desconhecida

Rookie

Para completar a trilogia dos posts sobre entropia (Abaixo de zero e Quantos times de futebol tem no Brasil?), preciso me explicar sobre o que disse anteriormente. Em meu primeiro post a respeito, mencionei a seguinte frase, falando sobre a mistura de dois estados:

A entropia indica quão bem feita é essa mistura, sendo máxima quando todas as configurações do sistema, todas as combinações de bolinhas em cima e embaixo, são possíveis e igualmente prováveis, ou seja, desordem completa, não posso afirmar nada sobre o estado atual do sistema, ele pode ser qualquer coisa.“.

Essa frase causou estranheza em alguns, que comentaram como pode uma situação em que eu sei tanto sobre o sistema (que todas as configurações possíveis são igualmente prováveis) ser também aquela que maximiza minha ignorância sobre o sistema. Vou tentar explicar o que quis dizer com isso, através de um problema que me foi proposto no último karaokê a que fui.

Imagine-se diante de duas caixas. Ambas possuem bolas de bilhar em seu interior, pretas e vermelhas, e seu objetivo é colocar a mão na caixa e, sem olhar, tirar uma bola preta. A primeira caixa é aberta e mostram a você que ela possui exatamente a mesma quantidade de bolas pretas e brancas. A segunda caixa, contudo, está completamente fechada e coberta, não é possível saber absolutamente nada sobre ela. A pergunta é: qual caixa você escolhe para jogar o jogo em que o objetivo é tirar a bola preta?

Escolha de caixas para tirar bola preta.

Escolha de caixas para tirar bola preta.

Colocar essa pergunta e colher respostas é um interessante experimento sobre a aversão ao risco, uma característica inata dos seres humanos de preferirem o conhecido ao desconhecido, ainda que o conhecido não seja lá tão bom. A resposta convencional que recebo, e a que ouvi da maior parte de meus colegas naquela noite de cantoria de música brega, é escolher a caixa conhecida. Ainda, na minha vez de responder, não hesitei: as caixas são completamente equivalentes.

Apesar da certeza de ter 50% de chance de ganhar o jogo na caixa da direita, eu tenho que ser coerente com a teoria de probabilidades na escolha. Na ausência de qualquer outra informação, eu não tenho razão para supor que a caixa da esquerda vá me favorecer ou me prejudicar, a única alternativa honesta é assumir que essas duas probabilidades são iguais, em uma hipótese de que o universo não é nem bonzinho nem sacana comigo. A caixa da direita, ainda que eu tenha bastante informação sobre ela, é absolutamente equivalente à caixa desconhecida quando o que quero é tirar uma bola preta!

Mas isso precisa de mais explicação. Não basta dizer que na ausência de informação a configuração mais provável é de 50%-50%, assim como dizer que Deus pode existir e não existir, então a probabilidade de existência ou não do divino é de 50%-50%; ou, ainda, considerando as três maiores religiões monoteístas do mundo, a chance de cada uma delas estar certa é de um terço. Tais considerações são absurdas, mas para as bolas na caixa ela é correta, porque, diferentemente da teologia, eu posso definir o que chamamos de espaço amostral da caixa.

Sabemos que a caixa tem um tamanho finito. Assim, podemos encontrar apenas $N$ bolas na caixa. Ao colocarmos em uma tabela todas as configurações possíveis de proporções de cores de bolas na caixa, percebemos que o número de configurações em que as vermelhas são mais prováveis que as pretas é igual ao número de situações em que elas são menos prováveis. Neste caso o espaço amostral está muito bem definido (diferentemente de meus problemas com o divino), então eu devo, para seu intelectualmente honesto, dizer que todas são equiprováveis.

Isso explica o que disse no post sobre a entropia. Em um sistema de máxima entropia, onde todas as configurações possíveis são iguais, eu tenho a maior “ignorância” sobre o sistema. Essa ignorância não é relativa à proporção de bolas ou às probabilidades associadas aos estados, essas eu conheço bem, a ignorância está no fato de que, em máxima entropia, sei tanto sobre o estado que o sistema estará como se não soubesse nada a respeito dele. Nesse sentido, entropia máxima é ignorância máxima.

Eu certamente não extingui o assunto, entropia é um assunto complicado demais. Ainda, espero que com esses três posts você tenha avançado um pouco mais na compreensão desse conceito, nascido nas máquinas térmicas do século XIX, que descreve tanto o número de configurações possíveis quanto nossa ignorância sobre um sistema, passando pela definição de temperatura e pela importância de times de futebol Brasil afora.