As eleições na França tiveram há pouco sua conclusão, com a vitória do socialista François Hollande, e logo as eleições americanas começarão. Eu conversava com um amigo francês a respeito, ele, em um não raro surto nacionalista, dizia ser raro encontrar um país com uma democracia tão funcional quanto a francesa, em que candidatos em igualdade de condições (mesmo tempo de propaganda eleitoral, por exemplo) são avaliados de forma justa e o escolhido é o favorito da população. Comparava esse sistema ao confuso método americano de eleições indiretas, que pode gerar aberrações estatísticas como a estranha eleição de Bush sem a maioria absoluta da população. Ainda, argumentei que o escrutínio francês não é perfeito, o método de eleição em dois turnos não é ideal. Ele perguntou qual seria, então; e a resposta é simples, e longe de intuitiva: nenhum método é justo.
Se Churchill disse que a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que já foram tentadas, o post de hoje é para convencê-los de que até em um caso bem simples a democracia não possui resposta fácil, a justiça nem sempre é evidente e uma eleição possui fatores que vão além de músicas contagiantes, propagandas elaboradas e discursos violentos.
Somos confrontados diversas vezes com situações em que uma eleição deve ser realizada, não damos a devida atenção ao método do escrutínio. Digo que não apenas ele amplifica ou ajuda um resultado, muitas vezes a forma de escrutínio determina o vencedor. Para não forçar meu argumento, vou listar os métodos mais tradicionais de escrutínio, todos baseados em sistemas existentes:
1º Método: eleições em um único turno. Inspirados em sistemas de democracia pequena, como a eleição para “chefe do grupo” ou para o diretório de estudantes de uma universidade, podemos apenas contar, em uma votação com uma opção apenas, quem tem mais votos e decidir que ele será o escolhido.
2º Método: eleições em dois turnos. Inspirados nas eleições francesas e brasileiras, podemos realizar uma primeira votação e, selecionados os dois melhores, podemos realizar um segundo turno e eleger vencedor o que obtiver então mais votos.
3º Método: atribuição de pontos. Inspirados nas eleições legislativas australianas, podemos atribuir pontos a suas preferências: 5 pontos ao favorito, 3 ao segundo favorito, 1 ao terceiro lugar e 0 ao que não querem de jeito nenhum. O candidato que ganhar mais pontos é eleito.
4º Método: contagem de confrontos. Inspirados nas eleições americanas, com um sistema um pouco diferente, podemos pensar em um sistema de “confronto” entre candidatos. Quantas vezes o A é preferido em relação ao B? E ao C? E ao D? Após todas essas comparações, ou confrontos, somamos o “placar” de cada candidato e o que tiver vencido mais confrontos é o eleito. Em outras palavras, é como simular todos os “segundos turnos” possíveis e eleger o candidato que vencer mais segundos turnos.
Todos esses métodos são usados em algum sistema democrático de comparação na vida real, não inventei nada. Ainda, digo a vocês que é impossível estabelecer um vencedor único, aliás, consigo situações em que é impossível encontrar um vencedor “justo” da eleição. Se você considera esses quatro métodos válidos, sigo contando a história de um país bem pequeno.
Apresento a vocês Pequenolândia, um país de dez habitantes que quer eleger seu presidente (não confundir com Pequenópolis, oficialmente cidade natal de Clark Kent). Quatro candidatos se apresentam, A, B, C e D. Cada cidadão possui para si uma ordem de prioridade na escolha dos candidatos, e eu apresento essa ordem em forma de tabela:
Eleitor | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 |
1º | A | A | A | A | B | B | B | C | C | D |
2º | D | C | D | D | C | C | C | D | D | C |
3º | B | D | B | B | D | D | D | B | B | B |
4º | C | B | C | C | A | A | A | A | A | A |
A constituição de Pequenolândia, contudo, não está escrita, eles precisam de um presidente para isso. Sem saber como realizar as votações, os habitantes de Pequenolândia se inspiram nas diferentes formas de classificação eleitoral pelo mundo, e, decididos a exercerem plenamente a democracia, realizam as eleições com os quatro métodos acima, e comparam resultados.
O primeiro método dá vitória ao A, preferido de quatro habitantes, vence os demais, cujas preferências são três, dois e um. O segundo método selecionaria o A e o B para um segundo turno, e podemos ver que o B vence o A na preferência dos eleitores que não votariam inicialmente neles, o que daria a vitória ao B em uma eleição a dois turnos.
Contando os pontos pelo terceiro método, teríamos o A com 20 pontos, o B com 21 pontos, o C com 25 pontos e o D com 24 pontos, sendo a vitória por pontos corridos claramente do candidato C. Se contarmos os confrontos, o A vence apenas 12 confrontos (4 vezes cada candidato), o B vence 15 (6 vezes o A, 6 vezes o C e 3 vezes o D), o C vence 16 (6 o A, 4 o B, 6 o D) e o candidato D vence 17 (6 o A, 7 o B e 4 o C) confrontos, sendo claro que a vitória pertence ao candidato D. Pequenolândia terá, como resultado de sua eleição, anarquia completa.
Esse pequeno exemplo ilustra como métodos reconhecidos e consagrados pelo uso na democracia não apenas geram resultados diferentes, eles determinam o vencedor. Cada método elegeu um candidato, e nenhum deles pode ser acusado de ser injusto, todos são usados em eleições, campeonatos e torneios.
Uma resposta otimista seria admitir que existe um método correto e justo, apenas que não é um desses que listei; mas os matemáticos já se encarregaram de arrasar esse otimismo com um sonoro não. O teorema da impossibilidade de Arrow afirma que quaisquer critérios justos que sejam escolhidos, com hipóteses matemáticas exatas de o que ele chama de justiça (todos os critérios acima satisfazem as hipóteses de Arrow), sempre é possível encontrar uma lista de preferências que eleja dois candidatos diferentes com métodos justos. De forma simplificada, nenhuma eleição é justa, Pequenolândia terá que escolher um método antes de escolher um presidente (diferentemente do Brasil em 1988). Em outras palavras, é impossível, de uma lista genérica de preferências, obter de forma inequívoca quem será o presidente.
Em um exemplo atual, e mais concreto, este artigo (agradecimentos a Guilherme Mazanti pelo link), infelizmente em francês, atesta um fato surpreendente. Nessas eleições francesas, o candidato François Bayrou, quinto colocado no primeiro turno, ganharia de qualquer oponente em um combate direito (4˚ método); se participasse, ele ganharia qualquer segundo turno! Ora, como pode um candidato preferido por toda a população a qualquer outra opção não apenas não ser o presidente, mas ser quinto lugar nas pesquisas? Eis um dos resultados impressionantes do teorema de Arrow, colocando em uma perspectiva diferente a afirmação de meu amigo, até que não deve ser tão difícil encontrar eleições mais justas que aquelas que não elegem o favorito da população frente a qualquer outra opção.
Ainda, quanto a meu amigo francês, ele pode ficar tranquilo. Diz-se que eleições justas são pleonasmo, pois se não fosse justa não seria eleição; Arrow nos garante, nada de pleonasmo, eleições justas são, na realidade, um paradoxo.
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Olá Ricardo! Excelente post!
Sou mestrando em economia cá na UFBA, e gostei bastante da leitura. Gostaria de saber de você, o que acha da aplicação de métodos quantitativos nas ciências sociais (aplicadas). Estudo esses métodos mas sempre há críticas quanto à abordagem. Gostaria de uma opinião de alguém que “faz ciência”, rsrsrs.
Felipe.
Olá Felipe, obrigado pelo comentário.
Ciências humanas são as mais complicadas das ciências, porque consideraram um sistema complexo demais com pouco espaço amostral, então me arrisco muito pouco em um comentário mais profundo. Os pilares da ciência são: preparação de amostral equivalentes para um experimento, repetibilidade de um experimento e observação de padrões comprováveis por experiência, infelizmente as ciências humanas têm problemas nessas três áreas. Nenhum ser humano ou conjunto de humanos é equivalente, então a preparação das amostras iguais é falha. O sistema é complexo demais para que possamos controlar todos os parâmetros e repitamos a experiência perfeitamente e, por fim, muitos dos padrões observados são extremamente difíceis de comprovar experimentalmente.
No entanto, acredito que matemática é melhor que não-matemática, e que as exatas têm muito a acrescentar na compreensão das ciências sociais. Acredito que todo sociólogo, antropólogo, economista ou psicólogo tem muito a ganhar em seu trabalho se aprender mais matemática. Matemáticos também têm a ganhar aprendendo sociologia, mas não tanto para seu trabalho como para se tornarem pessoas melhores.
Um ponto fraco que vejo nas ciências humanas, em meu patético conhecimento delas, é a existência de correntes ou vertentes, algo raro nas exatas. Há “escolas” de interpretação da mecânica quântica, por exemplo, mas essa interpretação pouco influencia no trabalho de um físico, que usa experimentos e matemática como verificação de suas ideias. Por isso, sou sempre a favor de métodos quantitativos nas ciências sociais, desde que eles sigam os padrões científicos: tenham ciência de suas limitações e sejam matematicamente rigorosos. Não há modelo para tudo, nem na física nem nas ciências humanas, e todo bom cientista deve ser intelectualmente íntegro para listar as fraquezas de seu modelo, preferindo isso a abraçar uma ideia como a verdade até no terreno em que ela é indefensável por alguma razão ideológica absolutamente irrelevante ao que chamamos de boa ciência.
Ricardo, você conhece muito de ciências humanas. Realmente, temos diversas limitações das aplicações matemáticas e, na maioria dos casos, reconhecemos nossas restrições. Após um período de grande aprofundamento dos métodos de inferência e estimação (estudo a área de econometria) com a aplicação de modelos matemáticos avançados, os economistas reconheceram que podem fazer muito mais se focarem a atenção em como controlar o modelo, como escolher as variáveis corretas, como inferir com mais precisão os resultados das estimações (aconselho, caso tenha interesse no assunto, o livro Mostly Harmless Econometrics).
A ideologia realmente é um grande entrave para o desenvolvimento de métodos quantitativos mais eficazes, uma vez que consome boa parte dos estudantes e pesquisadores (problema mais grave ainda aqui no Brasil, mas também existente em um grau relativamente alto aí na França também, certo?). A disputa ideológica encontra campo nos debates sobre o método: os críticos afirmam que não há uma ciência justa, pura, livre de ideologia, e que a matematização da ciência econômica já é por si, fruto de uma corrente de pensamento (clássicos, neoclássicos, novoclássicos, ou o “mainstream” da economia).
Ao chegar no campo econômico (sou graduado em Negociações Internacionais) acreditei que meu interesse pelos métodos quantitativos pudesse advir de um espírito geek (rsrs) que possuo. Com o tempo, fui percebendo que o estudo de estatística foi me afastando não só das ideologias adquiridas durante minha vida, mas também, me afastei da análise do homem, e das suas relações. Esse talvez seja o maior problema das ciências sociais: conciliar os métodos com o entendimento do comportamento humano. Ao reconhecer meu problema, dei meia volta e busquei equilibrar meus estudos.
Fico um pouco triste com essa realidade da ciência social. Não que espero que todos deem fundamental importância aos métodos quantitativos, mas que percebam a “justeza” dos argumentos por eles disponibilizados. Muitas das teorias econômicas nunca foram testadas “oficialmente” porque os estudiosos de determinadas áreas não aceitam os testes econométricos. No entanto, o que mais se vê hoje é a abordagem estatística, com trabalhos cada vez mais “realistas”. K. Arrow foi um desses caras, que soube trazer para matemática a não-linearidade do comportamento humano, das relações econômicas, da complexidade de todo o sistema.
Enfim, obrigado por dar sua opinião. E parabéns pelo blog e pela forma didática com que escreve!
Obs: Comecei a ler o blog justamente com esse post, não me lembro quando. Sei que, o descobri através do facebook, quando um conhecido meu compartilhou algum post seu, Cássio Fraga Dantas, acredito que se conheçam.
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