Desde muito pequeno eu quis ser cientista.
Quando tinha entre meus oito e nove anos, aprendi finalmente a matemática da divisão. Minha mãe então me contou que a circunferência de um círculo dividida por seu diâmetro era sempre o mesmo número, algo entre 3.14 e 3.15, mas mais perto do primeiro que do segundo. Parte por meu instinto natural de querer provar minha mãe errada, parte pela incredulidade de uma propriedade tão mágica da natureza, parti fita métrica e calculadora em punho conferindo cada um dos círculos que encontrava em minha casa: botão da máquina de lavar, copos, pratos, latas; e vez após vez minha mãe tinha razão.
A simplicidade e exatidão dessa verdade despertou em mim uma sensação de euforia que tenho buscado desde então. Não consigo explicar o que é essa forma de felicidade, ela não se parece com nenhum sentimento feliz que conheço. Quando recebi a notícia de que passei na prova da Polytechnique, quando meu pai disse ter orgulho de mim, quando recebi o primeiro beijo de minha futura mulher, quando voltei ligeiramente alto para casa de bicicleta em uma noite quente de verão de Paris achando tudo lindo; fui muito feliz em todas essas vezes, mas não é esse tipo de felicidade que essa euforia atinge.
Ela veio quando ouvi pela primeira a prova de Euclides de que os números primos são infinitos. ((A prova é a seguinte: imagine que não são, imagine que existe um número primo P que é o maior de todos. Se esse número existe, podemos pensar em um número N que é o produto de todos os primos, de 2 a P: N = 2.3.5.7.11 … P. Ele é inconcebível de tão grande, mas, dado que P existe e não há primo maior que P, ele existe. Então vejamos N + 1. Como N é o produto de todos os primos, ele é divisível por todos os primos; ele é, por exemplo, par. Mas se N é par, N + 1 é ímpar. Se N é divisível por 3, então N + 1 não é divisível por 3. Se N é divisível por qualquer primo, então N + 1 não é divisível por este primo. Ora, como N é divisível por todos os primos, N + 1 não é divisível por nenhum primo e é, portanto, um número primo! Ele com certeza é muito maior que P, o que viola nossa hipótese de que P é o maior de todos, caímos em contradição e provamos ser impossível haver um primo maior que todos os primos, logo, os primos são infinitos.)) Essa demonstração é elegante, simples, completa e possui uma reviravolta deliciosa no caminho para a contradição. A sensação que me causou no momento em que o N + 1 é paulatinamente provado não ser divisível por ninguém, quando eu mentalmente completei quais seriam os próximos passos e pude apreciar o caminho todo da prova, é essa euforia, essa epifania, que vez após vez a ciência provocou em mim. Quando entendi que o conceito de osmose era um fenômeno estatístico, quando calculei o pião de Lagrange e vi em equações preto no branco que um pião precisa rodar para continuar estável, quando vi a prova de que raiz de dois é irracional, quando aprendi a termodinâmica nuclear das estrelas e entendi onde cada elemento que existe se formou; em cada vez eu fui atingido por essa felicidade difícil de descrever. Na falta de nome, chamo-a de beleza.
Chamo-a assim porque já a experimentei em outras circunstâncias: vendo obras de arte, filmes, bons livros, boas músicas. Essa euforia intelectual não é única da ciência e da matemática, tive-a lendo “Os Miseráveis”, lendo “O Livro do Desassossego”, vendo as pinturas negras de Goya, visitando sozinho a tumba de Mereruka em Saqqara. É essa busca pela beleza que me tornou cientista, eu sonhava em tê-la como ganha-pão e experimentá-la frequentemente.
Foi essa busca que motivou a criação desse blog. Senti-me obrigado a ser um tradutor da beleza que via na física e na matemática aos que não tinham tempo ou condição de atravessar muitas horas de estudo e aulas que, na vasta maioria, não eram belas. Porque muitas vezes tinha a impressão de que professores e cientistas queriam esconder o que viam de bonito em suas áreas de estudo, eu precisava caçar, minerar as joias que apresento no blog. Mergulhei na ciência e transformei minha faculdade, mestrado e doutorado em arqueologia submarina, usei esse blog para apresentar os tesouros que encontrei. Essa página é meu destilado do que acho bonito, a parte da beleza que consigo apresentar em dez parágrafos e imagens feitas no Inkscape.
Nos últimos anos de minha tese e em meu pós-doutorado, tive dificuldade em encontrar essa beleza. Vida acadêmica não é simples, o prospecto profissional não é bom, postulamos para cargos e vagas em todos os lugares do mundo e não sabemos em qual continente moraremos ano que vem, para terminarmos, se dermos sorte, em alguma cidade fora de nosso controle para uma posição permanente. O alojamento é um pequeno apartamento, a duração é curta, tudo nessa vida é temporário, tudo é uma busca pela próxima vaga para que a posição atual não seja uma forma de desemprego adiado. Essa instabilidade e essa falta de prospecto são barreiras clássicas do percurso acadêmico, e não vieram sem antes me ter sido avisadas por todos os que me precederam.
Em meu planejamento inicial de carreira, antevi essas dificuldades e era confiante de que minha motivação seria maior do que as barreiras. Não gosto de uma vida temporária por dois anos, que seria seguida por outra vida temporária de mais dois anos e quem sabe outra, até convencer alguma universidade de meu valor aos quase trinta e cinco anos de idade. Universidade esta que provavelmente não estaria em uma cidade grande, mas isolada em algum país cuja língua eu não necessariamente falo, forçando-me a sacrifícios e cálculos impossíveis para terminar, com sorte, no mesmo código postal que minha mulher. A busca pela beleza pesava e compensava esses reveses, mantendo-me até então na carreira e na academia. Contudo, a maior surpresa do final de minha tese e meu pós-doutorado, aquela que eu menos antevi, foi uma realização difícil de admitir: eu não gosto de fazer pesquisa.
Não gosto da solidão competitiva de torturar algum assunto medianamente interessante, mas que está na moda, para arrancar algum roçado da cinza e torcer para que um editor e três revisores aceitem as justificativas que concatenei na introdução do artigo. Não gosto de estudar a correção da correção do termo extra da equação, como se todo o resto que é bonito já estivesse pronto e feito. Não gosto da parte de tentar convencer pessoas de que aquilo que tem sido o centro do interesse de minha pesquisa nos últimos meses vale a pena. Não gosto de ser obrigado a ler e produzir artigos em temas que nem tanto me interessam, que não possuem beleza, mas que estão quentes no mercado. Há quem adore esse jogo, esse desafio, essa competição; eu detestava. Tinha a ilusão de que como cientista poderia pesquisar o que quisesse, seguir os raciocínios em busca de conclusões em meus assuntos favoritos; ao final vi esses assuntos taxados como “não publicáveis” e diversos colegas, dispostos a me ajudar, oferecendo-me projetos quadrados, sem sal, sem sabor e sem beleza. Sofrer os problemas do parágrafo anterior sem a redenção que esperava da carreira de pesquisador não fazia sentido, minha escolha estava clara.
Sou apaixonado por física, por matemática, por ciência; tanto que achei que queria fazer disso minha carreira. Nessa trajetória, percebi que o caminho é mais árduo do que imaginava e que as recompensas menores do que esperava. Não experimentei tantas vezes essa beleza que busco, quando cria que perto da fonte ela seria ainda mais abundante. De tanto apreciar ouro, achei que adoraria minerá-lo. Amo o metal, mas detestei trabalhar nas minas.
Este blog canalizou e inspirou diversas obsessões que tive ao longo dos anos, seja coletando dados de políticos, aniversários de jogadores de futebol, colorindo um gráfico para corresponder às casas do banco imobiliário ou criando modelos complicados para alugueis em cidades unidimensionais. Alguns leitores perceberam que ao longo dos anos meus posts foram menos física e mais estatística, isso não é acidente. Os resultados e o retorno que tive das experiências estatísticas desse blog me convenceram de que o elo comum de vários assuntos que me interessam é criar modelos matemáticos para problemas inspirados na sociedade, em algum aspecto curioso da realidade, encontrar padrões no caos que nos cerca e descrevê-los com a matemática mais bonita que conheço. Encontrei beleza mais vezes em posts desse blog do que em conclusões de minha tese. Por isso, desde 2016, reconverti minhas atenções e estudos para estatística e suas aplicações. Após uma série de entrevistas desde fevereiro, recebi semana passada uma oferta para a vaga de estatístico no Google Paris, analisando e avaliando dados populacionais para encontrar padrões e narrativas que possam ajudar os produtos Google em geral.
Aos que estão agora em mestrado ou doutorado, não tenho conselhos para o que devem seguir. Esse não é um post que avisa os perigos e problemas dessa escolha, vocês provavelmente já os conhecem. Minha decisão de sair foi única e pessoal, não espero nem desejo que se torne um farol para acadêmicos hesitantes.
Mas se não posso aconselhar no que devem seguir, urjo para que a mente de vocês não se restrinja à carreira acadêmica como única opção, tomando qualquer questionamento como anátema ao amor que vocês têm por ciência. Faça cursos fora de sua área de especialização, cultive contatos profissionais em diversas áreas, respeite outras carreiras abandonando aquele discurso entojado de quem olha por cima julgando assuntos mais aplicados como quem se vendeu ao sistema. Não é fracasso sair da academia, não é falhar como cientista. Ciência é o que faz um cientista, a descoberta de padrões e leis a partir de dados seguindo o método científico. Por sua formação e maneira de pensar, você sempre será um cientista, uma vaga e um título não mudarão isso.
O blog continua, mas mudará um pouco de assuntos, continuará seguindo meus interesses conforme eles evoluem, como tem feito nos últimos seis anos. Um pouco menos termodinâmica e um pouco mais machine learning e deep learning, não consigo evitar. Peço desculpas aos que não gostarem da mudança, mas garanto que, como autor, não mudei na busca pela beleza e no desejo de contá-la e apresentá-la até na fila do pão. Estou bem animado com meu novo prospecto profissional e espero ter bastante coisa divertida para contar nos próximos meses. Khalil Gibran disse uma vez, e concordo, que vivemos apenas para descobrir beleza, todo o resto é uma forma de espera. Não quero deixar ninguém esperando.
Caro Ricardo,
Queria deixar meus parabéns pela decisão e dizer que acompanho seu blog desde 2013, quando entrei na faculdade. Cresci bastante como pessoa desde então, e todos esses problemas que você menciona contribuiram para que eu decidisse que, como você, não desejo seguir a carreira acadêmica, mesmo que eu ame ciência e valorize muito minha formação em física e matemática . Estou indo agora fazer um mestrado no exterior, que espero ser uma porta de entrada para o mercado.
Um abraço e boa sorte nessa nova jornada!
Primeiramente gostaria de lhe parabenizar pelo novo emprego!! Fico muito feliz toda vez que escuto relatos como o seu, pois eles encorajam físicos e matemáticos
a procurarem alternativas fora do mundo acadêmico. Provavelmente você deve estar ciente da situação atual que a pós-graduação se encontra no Brasil, com diversos problemas financeiros (como todo país), e em breve o sistema acadêmico irá ruir, uma vez que não conseguirá absorver todos os doutores que estão se formando nos últimos anos. Eu como doutorando em física, no Brasil, estou bastante preocupado, mas relatos como o seu, nos dão alguma esperança, e o seu conselho é de fato muito importante. Apesar de ser a primeira vez que estou comentando, acompanho o blog a anos e desejo todo sucesso do mundo para você e sua família.
Ricardo, conheci seu blog por um ex-colega de escola seu com quem morei durante o doutorado, e realmente o adorei. E este post foi particularmente interessante porque percebi algo meu nele. Eu fiz a pós-graduação porque achava pesquisa legal e para ser pesquisador no Brasil, você quase sempre também dará aulas, e embora isso no começo tenha parecido um meio (a aula) de atingir um fim (a pesquisa), no fim a aula se tornou O fim! Hoje amo dar aulas justamente porque posso buscar aproximar o aluno de um conteúdo nem sempre belo, mas através de um belo caminho. A falta de bons professores motiva o fato de que ainda posso tentar salvar alguns alunos para a ciência. A tarefa não é fácil, porque hoje ser youtuber ou digital influencer necessita muito menos esforço intelectual e quase sempre rende bem mais grana no fim, mas precisamos convencer os alunos de que a ciência ainda vale a pena. Um matemático que me foge o nome certa vez exclamou: “Certamente poderíamos não saber algo. Mas sabendo que é possível saber, o não saber se torna insuportável.” A busca pelo conhecimento sempre deve vir antes da busca pelo que fazer com ele. Parabéns pelo emprego e por favor continue com o blog, acho que você tem uma facilidade tremenda pra escrever de ciência.
Que lindo texto, Ricardo. Eu sou cientista e, embora tenha conseguido uma vaga dentro da academia, conheço muito amigos e estudantes talentosíssimos que acabam se frustrando muito com o modus operandi da academia. Bom, mesmo eu me sinto muito frustrado às vezes, e como o Wagner, descobri (ainda bem!) que gosto de dar aulas muito mais do que eu imaginava. Talvez seja para manter esse encantamento pelo belo, por aquilo que nos surpreende. Na graduação, tive essa sensação pela 1a vez lendo o “O que é vida?” do Schrödinger. Sem dúvida, o que nos faz cientistas é a nossa maneira de pensar, mas também acho que, pelo menos em muitos de nós, é a capacidade em encontrar essa beleza no mundo real através do método científico. Muitas felicidades no novo emprego, e que bom que o blog não vai parar =)
Caro Ricardo,
Excelente texto! Tuas experiências ressonam muito com as minha próprias. A estatística abre portas muito interessantes, especialmente, fora da academia. Assim que terminei meu doutorado em genética de populações em 2014, comecei a trabalhar numa empresa de agricultura como estatístico. Quatro anos mais tarde, meu trabalho tem muito menos a ver com estatística e muito mais a ver com genética de populações, novamente. Achei a beleza (pura) num ambiente não acadêmico. Bem vindo!
Saudações helvéticas,
Ricardo
Ricardo, ao acaso encontrei seu blog, por conta do post sobre Deep Learning. Eu, como alguém que ‘começou’ a ser Físico, porem no Canadá, e eventualmente percebeu tudo o que você descreveu sobre o meio acadêmico, achei esse post é incrível. Pude me identificar muito com ele, já partindo da euforia na infância ao descobrir fantástico, e inclusive na minha vontade de tentar uma vida na França. Parte disso, com certeza, se deve à sua grande habilidade na escrita de envolver o leitor, mas posso dizer que já senti muito do que compartilhou aqui. Por sinal, o seu post “Há partidos políticos no Brasil?” foi um dos mais interessantes que li por aqui.
Gostaria de perguntar, já que esse post é meio antigo e percebi que o blog está meio parado: como você está, como Cientista de Dados? Essa função consegue satisfazer aquela sua curiosidade inata sobre o mundo? Era o que imaginava? Imagino que as condições de trabalho devem ser muito melhores que no meio acadêmico!
Sinceramente, alguém pensando em fazer o mesmo. Até!