É difícil explicar a cadeia de sentimentos que me atingiu com a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos. Em primeiro lugar, feriu meu brio estatístico, eu estava disposto a apostar dinheiro alto em Hillary pelas projeções e pesquisas feitas exaustivamente por matemáticos e cientistas americanos, eles adoram essas coisas; e foi outro Brexit. Em segundo lugar, pelo desespero trazido pela realização que, Europa ou EUA, a esperança não é mais capaz de vencer o medo.
Sou, e sempre fui, um otimista. Sempre acho que meu ano presente é o melhor de minha vida, que a sociedade caminha em uma direção mais aberta, pluralista, receptiva e tolerante, que diversos direitos conquistados por minorias são agora inalienáveis e que a questão do racismo, da misoginia e da intolerância será naturalmente resolvida pela passagem inexorável das horas, pela morte, de velhice e pacífica, dessa geração criada com outros modos e outros costumes. Depois de hoje, não sei se sou capaz de levantar essa bandeira com tanta convicção.
É difícil generalizar esses eleitores, mas vou tentar assim mesmo. Sinto como se eles quisessem surrar com violência o establishment, Washington no caso dos americanos, e Trump era o punho. Sinto também, na Inglaterra e nos EUA, como se esse voto fosse o último grito de uma maioria branca que percebe no horizonte o fim de sua hegemonia e grita, esperneia, porque “cultura do país” e “sua cultura” não serão sinônimos óbvios. “Cultura branca” não é algo que existe, chamamos isso nesses países, infelizmente, de apenas cultura.
Porque ainda que tanto o Brexit quanto a eleição de Trump estejam fortemente correlacionados a raça, escolaridade e idade dos eleitores (brancos, sem ensino superior e acima de 50 anos votaram em bloco para o sucesso de ambos os cataclismos), sei que o silêncio de um dos lados é tão culpado quanto o barulho do outro.
Eu me considero um liberal, em um sentido bem vago da palavra. Posto bastante sobre política, então evito falar de minhas opiniões para não perder credibilidade, mas Donald Trump não é exatamente uma questão de opinião. Essa vitória chocante é um evento nauseante na história da democracia americana, um homem carregado ao poder por forças de nativismo, nacionalismo, misoginia e racismo. Trocam o primeiro presidente negro por um charlatão que sugou apoio de áreas xenofóbicas e de supremacia racial branca. É impossível reagir a esse evento com algo menor que repulsa. E ainda, apesar de todos os escândalos, apesar de todos os absurdos, os eleitores odiaram mais o que ele dizia combater do que seus hábitos horripilantes, e pagaram para ver o que estava “atrás da porta número 3”, como se em um programa de auditório, ao invés de uma mulher competente com história de vida pública, talvez história até demais.
Li uma vez um artigo no Le Monde cujo título me marcou bastante, ele dizia: “Et nos enfants nous appelleront: ‘barbares'”, ou, na minha tradução fraca, o título desse post. Ele me faz pensar em qual é o papel de alguém que se diz progressista, alguém que deseja estar do lado certo da história. Não é apenas, como alguns pensam, defendem direitos estabelecidos e claros, mas buscar novos. Nossa tarefa, nessas derrotas tenebrosas, nesses tempos sombrios, é erguer a cabeça e continuar lutando contra os males de hoje e de amanhã. Meu objetivo é não me tornar como minha avó, uma pessoa maravilhosa e mulher progressista em seu tempo, mas que não era capaz de admitir que Rui Barbosa era pardo, tampouco Machado de Assis.
Pensamos na escravidão, na ditadura militar, na repressão da era Vargas, na segregação americana e no Apartheid africano, no papel das mulheres durante toda a antiguidade até mais ou menos 1970, em homossexuais sendo castrados quimicamente, condenados à morte, em transexuais atravessando uma vida de repressão e culpa, e pensamos: “Bárbaros!”. Nossa tarefa não é apenas combater os males de hoje, não é apenas ter um amigo negro, ou um chefe gay, e achar que racismo e homofobia não se aplicam a você. Nossa tarefa é pensar: “por que meus filhos me chamarão de bárbaro?”, como eu chamo minha avó, e ela chamava, provavelmente, sua avó. Respondendo essa pergunta, você descobre o mal a combater.
Eu queria poder postar algo científico, estatístico, sobre a vitória de Trump, analisando detalhes da sondagem e apontando os pontos fracos, mas o fato é: ninguém sabe o que aconteceu. Explicações sobram, mas quando já se sabe a resposta fica bem mais fácil. Talvez as pessoas que mais votariam no Trump também seriam as que mais desconfiariam da mídia golpista que ligaria para fazer uma sondagem, o que criou uma sub-representação de trumpistas em três ou quatro estados chave, o suficiente para o sistema americano colapsar. Prometo um post sobre a forma de governo americana, e sobre como ela é particularmente ruim, para aparecer semana que vem.
É bom estar de volta, queria que as circunstâncias fossem outras.