Tirei férias, viajei a trabalho e abandonei o blog, confesso. Peço desculpas pela ausência de aviso, já que avisei ano passado, mas até durante a viagem esqueci meu carregador e meu notebook era apenas um peso de papel tecnologicamente avançado. Nesse último mês, coloquei meu primeiro artigo no arXiv, um grande site que abriga artigos científicos e os disponibiliza gratuitamente. Você pode conferir meu trabalho aqui, mas dificilmente ele será muito compreensível, então aproveito esse post para me fazer entender, e tentar explicar o que foi meu trabalho desses últimos meses.
Transporte de elétrons é algo bem importante na física, compreender e dominar essa arte é fundamental para construir qualquer aparelho eletrônico que se preze. Não domino nada de eletrônica, mas gosto de elétrons, e imagino um sistema da seguinte forma: elétrons podem entrar em uma “caixa” com propriedades praticamente desconhecidas, e podem sair dela. Dentro, fazem o que quiserem, e eu tenho pouquíssimo controle do que acontece nessa caixa. A pergunta é: sem saber praticamente nada sobre essa caixa, qual a melhor estimativa que posso fazer do fluxo de elétrons nesse sistema?
Eu honestamente prefiro elétrons em amarelo, mas em azul fica mais fácil ver, e é a preferência da física de partículas com que divido o apartamento. Essa pergunta sobre o fluxo de elétrons não é fácil, e é importante, esse tipo de sistema existe na vida real e a eletrônica de seu celular é cheia deles. Conhecido como “ponto quântico”, quantum dot, esse é um dos modelos mais simples de transmissão de elétrons em meios desconhecidos. Na vida real, isso é mais próximo dessa imagem:
Essa questão vem sendo respondida desde os anos 80, sempre com um modelo “ideal” em mente. Neste modelo, a caixa e os conectores são perfeitamente acoplados, não há chance de um elétron não entrar ou de não sair, ou seja, não há reflexão de elétrons no contato entre a caixa e os conectores. Esse modelo é extremamente bem sucedido, mas longe da realidade, e meu artigo é sobre aproximar esse modelo da realidade.
Em 2007, Kanzieper e Vidal deduziram como é esse fluxo para o caso em que há impurezas entre os conectores e a caixa. A fórmula que eles obtiveram é horrível, impraticável, ainda que não exatamente feia. Tanto é difícil que os autores só conseguiram estudar o caso de conectores muito pequenos, deixando passar apenas elétrons em uma dada velocidade, um modelo bem limitado. Nesses últimos quatro meses, tratei essa fórmula com muito carinho, e consegui resultados para um modelo um pouco diferente: podemos agora deixar passar quantos elétrons quisermos, e podemos calcular esse fluxo em qualquer precisão, mas minhas fórmulas funcionam melhor para pequenas impurezas. Quanto maiores as impurezas, mais conta você vai ter que fazer. Não é um modelo ruim, porque em geral o número de impurezas é pequeno. Ora, se o caso ideal já era bem sucedido, o caso “impurezas pequenas” será ainda melhor.
E esse foi meu trabalho. Não parece muito emocionante, não parece explicar a origem dos átomos, ou não revela uma verdade fundamental da natureza, mas isso é fazer ciência. O que aprendemos na escola, e a maior parte do que você encontra por aí, é ciência pronta, tudo acabado, bonitinho, ciência que já tem décadas, ou séculos, de idade. Fazer ciência, ser cientista, é como abrir caminho na floresta com um facão, não sabemos o que vamos encontrar, é difícil atravessar obstáculos e podemos muito bem não chegar a lugar nenhum. Se encontramos, no entanto, uma descoberta fascinante; logo esse caminho será alargado, asfaltado, iluminado e a descoberta receberá o tratamento que merece, só então ela vai parar nas escolas ou na divulgação científica.
A partir daqui, o post se torna Hardcore. Continue por sua conta em risco.
Eu não poderia encerrar esse post sem comentar algumas coisas específicas do meu artigo. Como vocês são gente grande na ciência, posso colocar uma imagem mais adequada do quantum dot:
Temos uma função de onda dos elétrons que entra e uma que sai. Os conectores desse tipo de sistema costumam ser projetados para deixarem passar funções de onda com um número de onda específico, ou seja, se decompusermos $\Psi$ em ondas planas, o conector vai transmitir apenas $N$ modos de onda. Analogamente, o conector de saída pode deixar passar $M$ modos. Esses valores são importantes, pois se são muito grandes a onda passa praticamente inteira.
A caixa sendo desconhecida, uma maneira de tratar o problema é supor que os elétrons sofrem espalhamento quântico no interior. Sendo agora um problema de scattering, podemos deduzir a matriz $S$ do problema (a matriz que torna a função de onda inicial na final: $\Psi^\prime=S\Psi$). O problema é que, para haver a $S$, precisamos no hamiltoniano da caixa, $H$. É um pouco complicado, mas possível, deduzir que, se a caixa é desconhecida, o hamiltoniano que maximiza a entropia e representa nossa melhor estimativa é um cujas entradas são gaussianas.
Um hamiltoniano gaussiano gera uma matriz $S$ do tipo “Poisson”, que é uma matriz complicada. Se supusermos o caso ideal, apenas o hamiltoniano da caixa conta e não há hamiltoniano de acoplamento entre a caixa e os conectores, então essa matriz $S$ será uma matriz uniformemente distribuída no espaço das matrizes unitárias. A partir dela, podemos estudar o que chamamos de autovalores de transmissão, que são os autovalores da parte de transmissão da matriz $S$. O trabalho de Kanzieper e Vidal deduz a densidade de probabilidade para esses autovalores, mas essa p.d.f. é horrenda. Neste artigo, descobrimos que se essa p.d.f. for expressa em termos de polinômios de Schur, ela fica muito mais bonita, e, além disso, podemos expressar a probabilidade do caso não-ideal como a do caso ideal vezes um fator de correção. Ele é feio, é verdade, mas essa informação é fundamental, porque podemos importar todos os cálculos de momentos e probabilidades do caso ideal (estudado desde os anos 80) para o não-ideal, bastando apenas multiplicar pelos fatores adequados. Se esse assunto interessar alguém, recomendo a excelente review de Beenakker.